Daqui sairá um herói
Rui Borges ou Bruno Lage, um dos dois chegará ao final da época tendo transformado uma equipa destruída em campeã nacional. Não são especiais nem transpiram futebol-Chanel, mas terão muitos méritos.

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O futebol vive debaixo da ilusão dos homens providenciais, dos eleitos que resolvem tudo por obra e graça do seu carisma, ignorando que desses só aparece um ou outro por década em todo o mundo e que, como temos visto com Mourinho ou Guardiola, mesmo a chama deles se extingue e os obriga a reinventarem-se a dado ponto da trajetória. E é curioso que, quando até as opções políticas que nos são postas à frente tendem a recorrer à narrativa do homem autoconstruído, do tipo que fez sucesso pelas suas próprias mãos, da meritocracia, depois no futebol rejeitemos essa ideia, como se os treinadores que edificaram a carreira a pulso não soubessem usar os talheres certos à mesa. Rui Borges e Bruno Lage têm defeitos, mas não me parece adequado recorrer à famosa frase de Jimmy Hagan, que diminuía o papel do treinador na conquista de um campeonato, afirmando que se as 16 equipas da I Divisão fossem dirigidas por 16 mecânicos de automóveis, no final um mecânico de automóveis acabaria por se sagrar campeão. Porque entre Borges e Lage, um deles vai ser campeão. E seja quem for terá méritos na saga, a começar pelo facto de tanto um como o outro ter conseguido recuperar uma equipa destruída.
Claro que neste sábado ou, o mais tardar, no sábado seguinte, é inevitável lembrar tudo o que jogou a favor do campeão. Se for Rui Borges, a máquina oleada e posta a laborar por Amorim. “Se Ruben Amorim tivesse continuado, o Sporting seria campeão com umas sete semanas de antecedência”, dir-vos-ão. Se for Bruno Lage, o plantel riquíssimo de opções disponibilizado pela SAD que mais investe no mercado nacional. “Com opções mais inteligentes e coerentes na formação do plantel e um treinador como deve ser o Benfica ganharia quatro campeonatos em cada cinco”, afirmar-vos-ão. Convém recordar, contudo, que esta normalização do sucesso se passa no puro domínio do contra-factual, no plano dos sonhos, porque na verdade nunca aconteceu: mesmo o tetracampeonato que o Benfica ganhou na década passada, entre 2014 e 2017, passou por uma troca de treinador a meio do processo, porque Jorge Jesus, o técnico que iniciou a conquista, tinha uma visão profundamente diferente da alimentada pela SAD e pelos seus parceiros estratégicos. E Rui Vitória, o homem que o substituiu, acabou depois por ser o sacrificado para abrir caminho ao primeiro período de Lage, que foi salvar uma época que parecia perdida para o FC Porto.
É certo que, repito, tanto Lage como Borges têm defeitos. No caso do treinador do Benfica é uma certa incapacidade de consolidação dos sucessos que consegue no plano estratégico e alguma propensão para negligenciar o domínio das partidas com bola, favorecendo sempre jogos mais partidos, que lhe permitam atacar em campo aberto com frequência. Já ao técnico do Sporting pode apontar-se alguma tendência para valorizar excessivamente cada pequena conquista, para ignorar o poderio da equipa, que é campeã nacional, levando-a a (ou antes permitindo-lhe) ceder a iniciativa e a apostar num tipo de jogo mais defensivo do que exige a grandeza do emblema que lidera. Nenhum dos dois caiu em graça – o que no caso de Lage, campeão-surpresa após remontada épica, em 2019, é muito estranho, pois não recordo um ambiente tão negativo em seu torno por essa altura. Parte da explicação partirá do facto de tanto um como o outro andarem no futebol desde a adolescência sem nunca terem entrado no lote de eleitos, dos que transpiram futebol com aroma a Chanel em cada declaração e até em cada silêncio. Lage e Borges jogaram futebol, mas o primeiro fê-lo apenas a nível regional e até aos 20 anos, antes de uma década a amargar como adjunto em escalões inferiores e de outra nas camadas jovens do Benfica, ao passo que o segundo teve umas fugazes aparições no segundo escalão, mas sem direito a aparecer nas coleções de cromos, antes de se fazer treinador na equipa da sua terra, Mirandela, no Campeonato de Portugal. Um tem aquele tom de voz nasalado, meio fanhoso, o outro um pronunciado sotaque transmontano, o que faz dos dois excelentes sujeitos para as anedotas e os coloca no lado oposto do espectro de onde os contemplam os especiais. Tanto um como o outro perderam já a etiqueta em conferências de imprensa, o que mostra que Lage está melhor na comunicação planeada, como as rodas expressivas com os jogadores, muito feitas para a filmagem, ou as gravações estratégicas com adeptos, do que em frente aos jornalistas, ou que o modo como Borges ganhou o grupo, que é bem visível na linguagem não verbal entre todos, não tem correspondência na forma como ele depois se expressa para o país.
“E o que importa isso? Isso é só comunicação”, dirão os que preferirem desvalorizar a vertente mais visível do trabalho dos treinadores de alto rendimento. Mas teria Mourinho sido quem foi sem o charme? Teria Guardiola sido quem foi sem a capacidade discursiva? Amorim sem o sorriso desarmante? Borges e Lage não têm nada disso, de facto. Mas alguém se lembra quão moribundo estava o Benfica em Setembro, quando o setubalense substituiu Roger Schmidt? Ou para onde caminhava o Sporting no dia em que o transmontano ocupou a vaga deixada por João Pereira? Sem as quatro jornadas de Schmidt (cinco pontos perdidos) ou as quatro de Pereira (oito pontos perdidos), tanto um como o outro já teriam neste momento a certeza da vitória na Liga (a do Sporting seria mesmo matemática) e poderiam encarar o dérbi de sábado como momento alto de consagração. Mesmo que depois de sábado ou, caso o jogo acabe por não ser decisivo, depois da última jornada, aquele que sair por cima acabe por ver o feito ser menorizado pela contribuição de Amorim ou pela dimensão do orçamento e pela força dos números da onda benfiquista, aqui estou já hoje a dizer-vos que houve muito mérito em cada conquista. E que tanto Rui Borges como Bruno Lage terão muito a aprender com os erros que cometeram desde que pegaram nas suas equipas, mas que, mesmo que nunca venham a usar uma bolsa Louis Vuitton com a naturalidade de quem o faz desde o berço, isso será sempre mais fácil do que encontrar um treinador especial ao virar da esquina.
A melhor forma dos jogadores do Benfica poderá fazer a diferença. O tal "inferno" da Luz conta para os primeiros 10/15 minutos, apenas isso. O problema para o Sporting é Pedro Gonçalves e Morita estarem a 50% do que podem fazer, Trincão e principalmente Quenda terem perdido fulgor, e Inácio estar sempre com problemas musculares (sendo ele bem mais jovem que Otamendi). E nessas diferenças, sim, tem o SLB vantagem e favoritismo.