O complexo James Dean
A estabilidade, como diz agora Rúben Amorim, “não é tudo na vida”. A frase explica a saída de Luís Freire de um Rio Ave onde a busca da novidade se sobrepôs ao que fez o sucesso nos últimos anos.
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Houve uma altura em que Rúben Amorim e Luís Freire pareciam ser uma espécie de “bons rebeldes” do futebol português, dois treinadores sem diploma, apregoando, cada um no seu patamar, as virtudes do 3x4x3 contra os limites impostos pelas instituições de classe. Ontem, quando já se sabia que o primeiro vai, como o Matt Damon de Good Will Hunting, para longe do Sporting, não para “ver de uma rapariga”, mas de um clube com outro potencial, o segundo viu também chegar ao fim o seu percurso no Rio Ave, que de repente recebeu do investidor grego os reforços suficientes para achar que já era demais para aquele líder modesto. Amorim e Freire, os técnicos que, por falta de curso, foram em dado momento forçados a falar através de adjuntos que faziam de boneco de ventríloquo no banco e nas flash interviews, eram os dois homens há mais tempo nos respetivos cargos na nossa Liga, que neste momento já só tem dois treinadores desde o início da época passada: Vasco Matos e Tiago Margarido, que estão à frente dos recém-promovidos Santa Clara e Nacional. E, como se defrontam logo à noite, podiam aproveitar para se unirem num abraço a celebrar as vantagens da estabilidade, melhor forma de fechar um fim-de-semana em que todos procuramos ainda assimilar os 3-0 da Atalanta da velha raposa Gianpiero Gasperini em Nápoles aos ainda líderes da Serie A. A estabilidade, como disse Amorim, “não é tudo na vida”, mas dá imenso jeito. O segredo é encontrar a forma de a fazer valer pontos.
Sobre Amorim já muito se disse – e ele vai sair por cima, para um clube grande de uma Liga que é a maior de todas, a inglesa. Freire, o campeão das subidas, que chegou a pulso à I Liga vindo dos distritais, vai deitar a toalha ao chão, sacrificado no altar da busca permanente da novidade. E foi uma busca dupla, porque tanto quanto a necessidade que os clubes sentem de abanar os balneários, rodando de forma incessante entre os mesmos de sempre num jogo das cadeiras que estimula o rendimento imediato pelo efeito de chicotada psicológica – ainda ontem se estreou em Arouca Vasco Seabra, que aos 41 anos vai para o sexto clube no escalão principal, tendo feito bons trabalhos em quase todos eles –, houve também no caso do Rio Ave a busca da novidade nos reforços que o clube finalmente pôde inscrever quando lá chegou o dinheiro de Evangelos Marinakis. O grego, dono do Nottingham Forest e do Olympiakos, pode ter estado na base do pagamento das dívidas e do levantamento da proibição de fazer novas inscrições, abrindo a possibilidade de chegada de reforços em barda a Vila do Conde, mas não há-de seguramente ter sido a razão para que subitamente muitos dos que fizeram o sucesso nas metas a que se propusera o Rio Ave nos últimos anos tenham sido postos de parte. O guarda-redes Jhonatan e o atacante Fábio Ronaldo passaram a segundas escolhas, os centrais Josué e Nóbrega, os médios Joca e Guga, o ala Costinha e o ponta-de-lança Boateng acabaram por sair, dando espaço à entrada de capital, nuns casos, ou de jogadores vindos do universo do investidor, noutros. E, tenha chegado para ajudar ou simplesmente para se manter em circulação, para não perder valor facial, o que é importante para o investidor, o sangue novo não se refletiu na melhoria do rendimento. No limite, acabou até por custar o lugar ao que ia passar a ser o treinador há mais tempo em funções na Liga.
A estabilidade é um paradigma difícil para os clubes portugueses, entalados entre a sua própria necessidade de atrair público através da novidade e a busca de melhores condições – financeiras, competitivas, de visibilidade... – das suas promessas, quer se trate de jogadores ou treinadores. Fica difícil vir aqui defender a manutenção tendencialmente permanente de um treinador quando, depois, se se lhe abre a possibilidade de subir na vida, é ele mesmo quem compreensivelmente opta por sair. Se o mesmo Amorim que sempre tinha defendido a estabilidade do plantel, que há dois anos deitou uma temporada ao lixo porque lhe tiraram Matheus Nunes no último dia de mercado, chega ao ponto em que afirma que “a estabilidade não é tudo na vida”, não é preciso esperar para ver o que acontecerá ao Sporting quando ele sair para se perceber que o problema não é ele mas sim o lugar de onde o avaliamos. A competência não tem idade, mas enquanto a competência jovem é mais atraente e sedutora, e por isso se torna mais impactante junto do público consumidor, a competência antiga traz menos riscos de deserção, porque em princípio já há-de ter vivido muito e conhecido mundo suficiente para valorizar a estabilidade. É por isso que vale tanto o exemplo de Gasperini, já a fazer a nona temporada à frente da Atalanta. No Verão, depois de ganhar a Liga Europa, especulou-se acerca da possibilidade de ele mudar de ares, mas se o salário que aufere não o torna propriamente atrativo para outros mercados e o facto de ter falhado no Inter, em 2011, e de advogar um futebol que, não sendo ultrapassado, é altamente divisionista, com as suas marcações individuais a todo o campo, leva hoje os grandes de Itália a pensar duas, três vezes antes de olharem para ele, o facto de já ter 66 anos leva-o também a valorizar as suas rotinas acima da busca de um novo desafio. E é isso que faz dele o encaixe perfeito para uma equipa como a Atalanta.
Ora, se a Atalanta não é uma das principais equipas da Serie A, os nossos grandes também não são peixe graúdo no oceano da indústria globalizada do futebol, pelo que a forma de olhar para as coisas de uns e outros não tem de ser assim tão diferente. E, no entanto, o treinador mais velho da nossa I Liga, que é Carlos Carvalhal, tem 58 anos. Além dele, só temos mais um acima dos 50, que é Armando Evangelista (51), à frente do FC Famalicão. Eu já fui da idade dos jogadores, mas neste momento já sofro até para encontrar treinadores mais velhos do que eu. E é aqui que vale a pena pensar se o desprezo pela estabilidade é ou não inversamente proporcional à busca de atualização dos nossos técnicos mais veteranos, se estes deixaram de estar empenhados e abertos à assimilação de saber ou se são pura e simplesmente vítimas de um passado que os terá marcado na perceção dos adeptos e de uma espécie de complexo de James Dean, graças ao qual aquilo que os clubes mais procuram num treinador é que venha personificar a frase de Willard Motley depois aplicada ao ator norte-americano. É que “viva [trabalhe] depressa, morra [se demita] jovem e apresente um cadáver atraente”.