O Aston Martin de Félix
O carrinho que valeu a expulsão a Félix na estreia pelo Chelsea custa aos londrinos o mesmo que a máquina usada por James Bond no último 007. O português fugiu de Simeone mas levou o Cholismo com ele.
Anda um homem a ouvir e a ler, anos a fio, que não tem consistência de jogo porque não corresponde aos desejos do treinador quando é preciso lutar pela bola, ganhar duelos, fazer aquilo a que na gíria se chama “mandar-se para o chão” ou “meter o pé” e, de repente, se se solta e finalmente o faz, vê um cartão vermelho assim de supetão, só para abrir a pestana. João Félix fugiu do Atlético Madrid e de Diego Simeone mas parece ter levado o “Cholismo” com ele para Londres. Sim, culpar o treinador argentino pela entrada perigosa de Félix sobre Kenny Tete é só estúpido – ainda que eu gostasse de ter estado na sala com Simeone no preciso momento em que ele viu o lance pela primeira vez, para tentar perceber o que lhe ia na alma. Validação da decisão de deixar sair um jogador pelo qual pagara 126 milhões de euros? Orgulho naquilo que lhe ensinou? Alívio por não ter de lidar com o problema? Irritação por verificar que ele não sabe fazer um carrinho? Gozo por ver dar-se mal um atacante cujas caraterísticas nunca terá apreciado verdadeiramente? Ao tornar-se o primeiro jogador do Chelsea a ser expulso na sua estreia na Premier League, Félix deitou a perder o jogo de ontem, com o Fulham, mas também os três que se seguem, para os quais vai estar castigado. Um dos seis meses pelos quais, entre empréstimo e salários, o Chelsea vai pagar quase 17 milhões de euros já foi pelo cano. Foram quase três milhões gastos num carrinho destemperado. É o valor do Aston Martin usado por James Bond no último 007. E, no entanto, as sensações que ele causara até àquele momento de loucura tinham sido boas. João Félix estava bem no jogo, a emparelhar com Havertz, a dar criatividade à equipa, a sofrer faltas e a provocar amarelos aos adversários. A estreia concentrou em apenas 58 minutos o brilho e a inconsistência que marcaram os últimos três anos e meio da carreira do português, que parecia um adolescente em busca de aprovação. Se em Madrid lhe criticavam a falta de empenho nos momentos em que era preciso defender, se à chegada a Londres lhe diziam que a Premier League ia exigir dele um upgrade em espírito de luta e sacrifício, ele meteu na cabeça que tinha de se esforçar. Esforça-te, João. Mas um bocadinho menos.
O dérbi das perceções. Já partilhei convosco uma vez que nasci em dia de Benfica-Sporting. Só o descobri anos mais tarde, quando a necessidade de fazer receita levou alguns jornais a vender reproduções de primeiras páginas antigas como presente de aniversário, incluindo nelas uma notícia do nascimento do aniversariante. O meu fascínio pelo dérbi de Lisboa, por todos os dérbis, pelos jogos que dividam cidades, regiões ou países ao meio, não nasceu desse conhecimento. Já o tinha desde miúdo, pela forma excessiva como estes jogos são sempre vividos. Uma vitória dá o céu, uma derrota vale o inferno. E este será um extraordinário fim-de-semana, porque há Benfica-Sporting, mas também há um United-City em Manchester, um Tottenham-Arsenal em Londres e, não sendo um dérbi, um FC Barcelona-Real Madrid, o Super Clássico espanhol, em Riade, na vitória final das TVs sobre as bancadas no que à paixão pelo futebol diz respeito. O Benfica-Sporting deste domingo pode ter perdido alguma carga cénica com a derrota dos leões no Funchal, na semana passada, mas não deixa de mexer com o coração da maioria dos adeptos e de ter alguma importância em termos práticos, porque aqui se joga também com a perceção. O Benfica joga a credibilidade da sua candidatura, o Sporting a sobrevivência da época. E é neste momento que se erguem os mais inflamados e acirrados de vós na defesa dos emblemas: “Como assim?!”, clamam, aceitando a verdade do raciocínio no que diz respeito ao rival mas não às vossas próprias cores. Desde a interrupção para o Mundial, o Benfica saiu da Taça da Liga, ganhou um e perdeu outro dos jogos que fez no campeonato e eliminou uma equipa da Liga 3 na Taça de Portugal, sempre com exibições mais perto do minimal do que do impressionante com que tinha pontuado o início de época. Ainda é o favorito à conquista da Liga, pois tem meios e uma vantagem importante, mas precisa de impedir que se alastre – sobretudo ao seio da equipa – a ideia de que não consegue manter o andamento. O Sporting, que há uma semana se admitia pudesse voltar a entrar na luta pelo título se ganhasse na Luz – ficaria a seis pontos, mas recebendo os outros três candidatos em Alvalade na segunda volta – está no polo oposto: depois de perder com o Marítimo, se não resiste ao confronto com o rival vai deixar que se instale a ideia de que a época acabou e que nem o acesso à Liga dos Campeões está ao seu alcance, o que pode ser assassino em termos de gestão dos quatro meses que ainda há por jogar. Este será, por isso, em grande parte, como são todos, um dérbi jogado no campo das perceções.
O Futebol 3.0. Em Espanha, há Supertaça a decorrer, mas o assunto do momento é o Enigma, o jogador mistério da King’s League de Gerard Piqué, que entrou em campo com uma máscara de wrestler mexicano, leggings, luvas e mangas compridas, de modo a tapar tatuagens que o denunciassem. A King’s League, para quem não sabe, é uma Liga de futebol de sete, disputada por equipas presididas por antigos jogadores, como Aguero ou Casillas, e por “criadores de conteúdo digital”. E todas as semanas lá surgem estrelas, ao abrigo de uma regra que permite um convidado. Capdevila, Saviola ou Chicharito já jogaram, o futsalista português Ricardinho mostrou-se interessado e agora apareceu o mascarado, sob o pretexto de ainda estar no ativo e de o seu clube não o autorizar a jogar aquela competição. Está tudo no mistério, além de estar na infração, no proibido. A King’s League é mais uma vitória, já não da TV mas da Twitch e do YouTube, as plataformas de streaming que popularizaram Ibai Llanos, sócio do ex-capitão do FC Barcelona na sua criação, e que transmitem os jogos, causando algum incómodo a Javier Tebas, o presidente da Federação Espanhola. Isto já não é futebol 2.0, como a Supertaça que Tebas (e Piqué...) levou para a Arábia Saudita a troco do dinheiro, forçando os verdadeiros adeptos a vê-la pela TV. É futebol 3.0, não só por causa das vias de difusão, mas porque ali o conteúdo deixa de ser o mais importante. Sejam bem-vindos ao futuro.
“… um FC Barcelona-Real Madrid, o Super Clássico espanhol, em Riade, na vitória final das TVs sobre as bancadas no que à paixão pelo futebol diz respeito.”
Irónico como em Portugal nenhum dos canais de desporto estão a transmitir a Supertaça Espanhola.