Num instante, tudo muda
Os quadros táticos publicados hoje para o FC Arouca-Sporting ou o Benfica-Estoril dão-nos conta de dois choques entre um 3x4x3 e um 4x2x3x1. Mas o futebol já não se analisa assim. É bem mais complexo.
Palavras: 1555. Tempo de leitura: 7 minutos
Olha-se para a disposição tática de Sporting e Benfica, ontem, nos jogos contra o FC Arouca e o Estoril, e nada mudou. Rúben Amorim voltou a colocar os leões em 3x4x3 e ele próprio teve o cuidado de dizer ao jornalista encarregue da flash interview que nem o início de organização defensiva em 4x2x4 foi novo, que já o tinham feito antes, mas foi em função das diferentes formas de encarar o desafio que estava a ser colocado ao seu lado direito que o Sporting teve, primeiro, o comando do jogo, depois sofreu e, por fim, o controlou, mesmo sem a bola. Roger Schmidt manteve o 4x2x3x1 de sempre, mas muita coisa muda se a equipa utiliza Kokçu como um dez mais recuado ou Rafa como um nove mais atrasado. Os dois primeiros ganharam os seus jogos, não o fizeram de maneira absolutamente convincente, mas demonstraram a quem quis ver a importância destas pequenas nuances no desenrolar do novelo futebolístico que se observa a cada fim-de-semana, mesmo quando olhamos para os quadros táticos que os jornais e as apps especializadas nos mostram de cada jogo e nada parece ter mudado. Mas não, porque nestas coisas, num instante tudo muda. Em Arouca, entrando no 4x2x3x1 de sempre, Daniel Sousa viu-se compelido a aproveitar as caraterísticas de jogador total de Sylla, mandando-o baixar para defender na esquerda de forma a fazer, por fora do lateral Weverson, uma linha de cinco capaz de suportar os desafios que o Sporting lhe apresentava na largura. Assim transformava um 4x2x3x1 com bola num 5x2x3 defensivo. Se os leões atacam com cinco – e fazem-no sempre em 3x2x5, às vezes até em 3x1x6, se Morita se junta aos dois alas e aos três atacantes na linha da frente –, havia que defender com cinco também, para evitar que fosse necessário fazer bascular tanto a linha mais recuada na cobertura da largura. É que sempre que a equipa tem de deslizar em basculação há uma maior possibilidade de se abrir espaço pelo lado que estava negligenciado, sobretudo se falha a pressão interior em cima do condutor. O primeiro impacto foi de dificuldade e o Sporting marcou, explorando precisamente essa questão: houve falta de pressão na aceleração de Trincão da direita para o meio e ele pôde soltar a corrida de Matheus Reis no outro lado no tempo exato para este depois deixar Gyökeres na cara do golo. Só que estas coisas são dinâmicas e a partir de determinada altura o recuo de Sylla levava à subida de Quaresma em ação pressionante e na direita da defesa leonina abria-se uma cratera para as diagonais de Mujica, o tal que no papel era avançado-centro mas que na prática andou pela esquerda. Ação-reação, as procuras de profundidade de Mujica na esquerda levavam com ele Coates, afundando a linha defensiva leonina e abrindo um buraco imenso nas entrelinhas para que nele se movessem Cristo e Jason, os outros dois atacantes, que concorriam pelo corredor central. As dificuldades para o Sporting só foram atenuadas quando entrou Inácio e Diomande passou a controlar a direita com outro tipo de ação, mas na teoria Amorim passou todo o jogo com o mesmo sistema, da mesma forma que Schmidt se manteve fiel ao 4x2x3x1, mesmo que tenha trocado a ação acelerativa de Rafa como segundo avançado pela visão panorâmica de Kokçu como terceiro médio. Os mapas de calor – mais avermelhado quantas mais são as ações com bola dos jogadores em cada zona do campo – de Rafa contra o Rangers e de Kokçu contra o Estoril mostram bem as diferenças entre uma opção e a outra, mas não esclarecem aquilo que toda a gente quer saber: afinal qual é a melhor? Com um terceiro médio, um jogador que pegue no jogo e lance os companheiros, o Benfica fica menos exposto no momento defensivo – normal, tem mais um homem atrás da linha da bola. Com um segundo avançado, o Benfica chega com mais gente a zonas de finalização – e o jogo de ontem foi exemplo paradigmático disso, com os seus dois períodos largos que a equipa passou sem rematar, o primeiro entre os 19’ e os 42’ e o segundo entre os 65’ e os 90’.
A mentira dos números. Utilizo amiúde os números para analisar os jogos, mas sei bem que eles, bem torturados, nos dizem aquilo que queremos ouvir. Quem quiser contrariar-me se eu digo que a introdução de Kokçu limita a presença de unidades benfiquistas em zona de remate pode lembrar que o turco foi, com Marcos Leonardo, um dos que mais finalizou na equipa, ontem – fizeram quatro tentativas cada um. Quem quiser contrariar aquela frase polémica – e eu nem costumo ser polémico, portanto aproveitem... – sobre as “debilidades” de Gyökeres, pode recorrer ao jogo de ontem, em que o sueco fez mais um golo e uma assistência e voltou a ser preponderante na vitória leonina. Mantenho que Gyökeres está a ser o melhor jogador da Liga Portuguesa – e já o tinha escrito nesse texto –, como mantenho que, mais ainda se está fatigado, ele fica a dever um pouco à clarividência e toma regularmente más opções na definição de contra-ataques em que o Sporting se apresenta em superioridade ou paridade numérica. Ontem, da mesma forma que se lá chegaram em vantagem, porque foi ele que marcou o golo do 1-0, se os leões sofreram até aos 90’, quando Geny Catamo fez o segundo, isso em muito se deveu a más opções de Gyökeres num par de lances em que, pensando de forma coletiva, a equipa podia ter acabado mais cedo com o jogo. Isso faz de Gyökeres um mau jogador? Não, nem por sombras. É o melhor jogador da Liga 23/24 e teve um impacto absolutamente decisivo na campanha leonina. Se o Sporting for campeão é sobretudo a ele que o deve. Faz é com que se entenda onde é que ele pode melhorar para ser o avançado de 100 milhões que estão na sua cláusula de rescisão.
Os avançados do Benfica. Quem não vai à bola só com os números é Schmidt. Ou pelo menos, quando se trata de avançados, não se limita a olhar para o total de golos que marcam. Depois de já ter dito algo como que um bom avançado não se vê só pelos golos que marca, o alemão voltou a surpreender os adeptos e os jornalistas ao dizer, na semana passada, que muda muito os nove da equipa porque nenhum deles foi ainda consistente. E alongou-se no efeito surpresa quando afirmou ontem que estava “muito contente” com o que mostrou Marcos Leonardo. A verdade é que o que o jovem brasileiro trouxe à equipa ontem foi sobretudo aquilo que já tinha trazido sempre que foi utilizado: um golo. De resto, passou muito tempo alheado do jogo, tenha sido porque ele não entendia a equipa ou porque a equipa não o entendia a ele. Fico na expectativa para ver qual será a opção de Schmidt para a posição em Glasgow – e cheira-me a Rafa, outra vez com Kokçu como terceiro médio –, como na expectativa estou em relação aos dois jogadores que melhor aproveitaram a oportunidade que o treinador lhes deu ontem, Tomás Araújo e Tiago Gouveia. O central foi o melhor da linha de trás, pela forma como soube sempre sair em pressão mais subida para ganhar a bola ou pela maneira como conseguiu controlar o espaço na profundidade, permitindo que a equipa jogasse mais alto no campo do que quando está lá Otamendi. O extremo não é só um acelerador capaz de empenho defensivo: tem capacidade para desbloquear jogos, como se viu na assistência para o segundo golo e, sobretudo, quando marcou o terceiro em belo lance individual. Ambos merecem mais tempo de jogo.
Um abraço para a vida. Se há relação que merece um filme ou um documentário desses em que as plataformas de streaming agora se especializaram é a de respeito e admiração criada entre Jürgen Klopp e Pep Guardiola. Ambos corporizam na perfeição aquela frase feita que já foi atribuída a tanta gente que não se sabe bem quem a disse primeiro, a de que o futebol é a coisa mais importante das que são menos importantes na nossa vida. Ambos se riem, como ambos perdem a cabeça nas laterais. Ambos são capazes de gestos de fair-play, como ambos se enfurecem se de repente acham que estão a ser prejudicados. Mas no final encontram-se inevitavelmente num abraço que pode ter visto a sua última edição ontem, no Liverpool FC-Manchester City que acabou num empate a uma bola. Klopp vai parar, fazer um ano sabático que Guardiola já fez depois da extenuante experiência no FC Barcelona, e a única possibilidade de os dois ainda se encontrarem para uma despedida reside na Taça de Inglaterra: terão de superar os quartos-de-final, no próximo fim-de-semana, e esperar que o sorteio das meias finais ou a competência nessa fase os leve a um último confronto, de preferência na decisão de Wembley, com toda a carga cénica que tem aquela entrada em campo. Aí, sim, o abraço que darão pode ser para a vida.