Não batam com as portas!
Blatter já iniciou o caminho do arrependimento e admitiu que a escolha do Qatar para fazer o Mundial foi uma má decisão. Falta-lhe fazer as pazes com o passado e encarar as razões certas para o erro.
Sepp Blatter disse ontem ao jornal suíço Tages-Anzeiger que a atribuição do Mundial de 2022 ao Qatar foi “um erro”, “uma má escolha”. E entreteve-se depois a desfilar todas as razões menos importantes para justificar uma ação da qual, enquanto presidente da FIFA à data da votação, em 2010, tem de ser dado como máximo responsável. Não foi só ele que votou? Não, de facto. Blatter só tinha um de 22 votos – e muita influência sobre os outros votantes, é bom não o negligenciar. Mas dizer que a escolha foi um erro porque “o Qatar é demasiado pequeno para a dimensão da prova” no mesmo dia em que Khalid Salman, ex-internacional catari que agora é Embaixador do Mundial, afirmou à ZDF que “a homossexualidade é uma perturbação mental”, ou é um “Azar dos Távoras” ou então equivale à zanga do avô velhinho que, perante o bombardeamento do prédio onde estava a dormir, resmunga: “Não batam com as portas!”
Há muitas razões para acharmos hoje, doze anos depois, que a escolha do Qatar foi um erro – e não estou nada convencido de que a proximidade entre todos os estádios onde a prova vai decorrer, permitindo aos adeptos, por exemplo, verem dois jogos no mesmo dia, seja uma delas. O meu primeiro Mundial no terreno foi o dos EUA, em 1994, e não só fiquei abismado com as distâncias, como o tempo a viajar de umas sedes para as outras me impediu de seguir devidamente a prova, como o fazia quando a via pela televisão, ou como fiz, por exemplo, no Europeu de 1992, na Suécia, que também acompanhei no local e que foi consagrado ao lema “Small is Beautiful”. A proximidade não é, por isso, um problema, desde que haja condições para acomodar os adeptos nas zonas onde vai jogar-se. E é aí que chegamos a uma das muitas razões para achar que a atribuição do Mundial 2022 ao Qatar foi um erro. À cabeça de todas elas está o péssimo registo do emirato no que toca a direitos humanos, sofrido na pele pelos muitos trabalhadores estrangeiros contratados para construir as infraestruturas necessárias a essa organização. Fala-se em mão de obra escravizada e Blatter grita lá do seu quarto: “Não batam com as portas!”
A FIFA de Gianni Infantino, que já várias vezes renegou a herança da FIFA de Blatter, tem feito esforços no sentido de explicar – sempre não oficialmente, como é evidente – que o problema aqui não é o Mundial, que o Qatar seria muito pior no que toca a respeito pelos direitos dos trabalhadores migrantes – e das mulheres e da comunidade LGBT – se não houvesse Mundial. A mim já mo disseram várias vezes, a última em resposta a este texto, e não me custa admiti-lo, achar até que Infantino está no Qatar para funcionar como uma espécie de líder de uma polícia informal dos bons costumes e defensor de alguma decência. Mas a consciência desse facto e dos fortíssimos indícios de corrupção na votação de 2010, sim, são razões muito válidas para se achar que a atribuição do Mundial ao Qatar foi um erro. Um erro que devia ter sido revertido. O próprio Blatter, aliás, na mesma entrevista, levanta agora a suspeita da interferência do então presidente francês, Nicolas Sarkozy, por intermédio de Michel Platini, à data presidente da UEFA. Diz Blatter que Platini lhe revelou em tempos uma conversa com Sarkozy no Eliseu, em que este lhe pedira para fazer os possíveis para que o Qatar ganhasse a corrida, encaminhando para o lado certo os votos dos membros europeus do Comité Executivo. E a seguir constatou que a vitória na votação foi seguida por um negócio de venda de caças da França ao Qatar, no valor de 14,5 mil milhões de dólares. Mas o que é isso ao pé da constatação de que o Qatar é um país “demasiado pequeno”, certo? “Não batam com as portas!”
Blatter até podia não saber desta aldrabice que agora desvenda aquando da votação, que ele não revelou quando Platini lhe fez a confissão, mas já o sabia seguramente quando, em 2012, nomeou o procurador norte-americano Michael J. Garcia para investigar os processos de atribuição dos Mundiais de 2018 e 2022. E é no mínimo interessante que do relatório saído dessa investigação, que primeiro foi silenciado e depois libertado – ainda que amputado de algumas partes, alegadamente para salvaguardar o anonimato das testemunhas – tenham resultado acusações a vários dos 22 votantes, mas não aos europeus. Ou que antes disso, em 2011, falando ante uma Comissão Parlamentar no Reino Unido, David Triesman, presidente da candidatura inglesa, tenha acusado quatro membros do Comité Executivo – todos não europeus, citando-lhes os nomes, que são públicos – de pedirem dinheiro para dar uma ajuda. Treze dos 22 votantes na atribuição dos Mundiais de 2018 e 2022 tiveram, entretanto, problemas graves com a justiça. Foram acusados, condenados, banidos do futebol... E, ainda assim, em 2014, no Comité Executivo de Marraquexe, Sepp Blatter apoiou-se na opinião de dois peritos legais para decidir que não poderia haver lugar a novas votações. Em 2014 ainda haveria oito anos para se organizar um Mundial. Mas em 2014, provavelmente, Blatter ainda não tinha instalado o Google Maps e não sabia que o Qatar era demasiado pequeno para um Mundial. “Não batam com as portas!”
Agora, lendo atrocidades como as que são proferidas por Salman, tendo já eu decidido que, sim, irei ao Qatar comentar o Portugal-Uruguai, até ver o único jogo da seleção portuguesa que a RTP vai garantidamente ter, e que, sim, respeitarei os costumes locais, porque ali sou apenas uma visita, não escondo que fico desconfortável com a ideia de estar a compactuar com tudo isto. Penso, ao mesmo tempo, que o Mundial é um direito dos adeptos, em nada culpados da corrupção na FIFA ou do facto de haver estados que fazem das vistas custas e do desrespeito pelos outros uma forma de estar na vida. Que o Mundial é um direito dos jogadores, que se batem durante quatro anos para estarem presentes numa competição que é o pináculo das suas carreiras. Sinto orgulho nos que manifestaram já o desejo de usar no Mundial a braçadeira One Love, com as cores do arco íris, como forma polida, vamos chamar-lhe assim, de manifestar respeito por opções que são de cada um, que não devem ser impostas a ninguém, e de condenar aqueles que querem impor a sua maneira de viver aos outros como única válida. Mas agora, que faltam onze dias para o Mundial, sou eu que pego na deixa de Blatter e grito aqui do meu cantinho: “Não batam com as portas!”