As condições do Mundial no Qatar
O Mundial de futebol começa de hoje a um mês. E antes de começarmos a discutir os jogos ou até as convocatórias das 32 seleções, há muito que falar. A começar pelas condições em que se chegou aqui.
Diogo Jota está fora do Mundial, lesionado. Veremos se Danilo, Nuno Mendes e Pepe ainda recuperam das lesões que também os afetam a tempo de fazer a viagem ao Qatar. Ronaldo continua a tornar as coisas difíceis para si próprio por se recusar a sair da bolha de idolatria excessiva em que entrou quando se tornou o melhor do Mundo. E, como se já não bastasse a contestação às escolhas, ao futebol da equipa e à manutenção do selecionador no cargo após o Europeu’2020, Fernando Santos e a FPF ainda não deram ao país uma resposta em condições acerca da condenação do selecionador no processo de tentativa de fuga ao fisco no vínculo estabelecido entre ambos através da Femacosa, a empresa de Santos. Há muito Mundial antes do Mundial – e isso nem é coisa apenas portuguesa, como se percebe pelo diálogo de surdos entre a FIFA, o comité organizador local e organizações como a Amnistia Internacional, que ainda ontem acusou o Qatar de “persistir numa escala significativa” na violação dos direitos humanos.
Que houve violação, ninguém duvida. Aliás, nem a FIFA, nem o próprio estado do Qatar. Mas, como em tudo, aqui trata-se de uma questão de perspetiva, de ver o copo meio cheio ou meio vazio, de traçarmos um risco no chão entre o que é progresso e o que é absolutamente inaceitável para o atingir. A organização que gere o futebol Mundial destaca iniciativas que beneficiarão os trabalhadores migrantes no Qatar “muito para lá da data do último jogo do Mundial”, o governo catari diz que a realização do Mundial será “um catalisador para acelerar iniciativas que deixem um legado de progresso significativo e sustentável para o país e a região”, mas a verdade é que a competição deixa um rasto de morte que o The Guardian já quantificou: foram 6500 os que pereceram na construção de várias infraestruturas. 6500 mortes que organizações como a Amnistia Internacional já vieram alegar que não foram devidamente investigadas, no sentido de se apurarem responsabilidades. E isso é mais do que grave. É inaceitável. Não digo que tenha de levar ao boicote, como foi defendido por algumas figuras do futebol internacional, mas deve pelo menos servir de travão a esta ganância que passa por dar novos mercados ao futebol.
É que, mesmo reconhecendo “uma evolução positiva no sistema laboral do Qatar”, a Amnistia Internacional reforçou ontem a ideia de que as violações persistem, destacando que alguns migrantes são forçados a trabalhar 18 horas por dia, sem um dia de folga semanal sequer, e que terão sido esses abusos, somados ao calor extremo debaixo do qual tinham de trabalhar, a condenar grande parte deles à fatalidade. Ora, se falamos do Mundial mais caro de sempre, com um custo estimado de 225 mil milhões de euros – são 15 vezes mais do que o anterior recordista, o Brasil’2014 – parece evidente que houve uma enorme falta de respeito pelo semelhante na alocação destas verbas. Há iniciativas como o PayUpFIFA, da Human Rights Watch, destinadas a forçar a FIFA a pagar pelos abusos, mas tendo em conta o que o Mundial vai custar, parece-me evidente que já houve quem pagasse. O problema é que o dinheiro foi parar às mãos erradas, beneficiando das condições de exceção que são impostas por um regime totalitário que é difícil de engolir por quem vê o Mundo da nossa perspetiva ocidental. Ora isso não é coisa de hoje: tal como poderão perceber pela série O Mundial Vai ao BAR, que ontem inaugurei, há, associados ao Campeonato do Mundo, ao longo de quase um século de história, episódios que envergonharam o futebol e a humanidade e que, hoje, a esta distância temporal, são vistos com leveza e até fruto de conversas de café.
A atribuição de um Mundial à ditadura de Videla, em 1978, ou a forma como a competição já serviu de “sportswashing” à Itália de Mussolini, em 1934 – já para não falar na agora tão em voga Rússia de Putin, em 2018 – não terão sido menos graves na altura do que é este alargar dos mercados ao mundo árabe, com a designação do Qatar como sede. E em momento algum estas questões foram tão combatidas como estão a ser agora. Não nos compete a nós definir como os cataris vivem as suas vidas. Já recebi, nos formulários de acreditação e de pedido de visto de entrada que preenchi, diversas advertências acerca dos comportamentos que não poderei ter. Não poderei consumir bebidas alcoólicas em público, não poderei sequer tocar em pessoas do sexo oposto, nem para as cumprimentar... A lista é extensa e não me incomoda por aí além – isso sim, por mais que discordemos, pode ser considerado um sinal de respeito pela cultura que nos acolherá. Mas exijo que a FIFA passe a partir de hoje a ter respeito pelo ser humano, pela esmagadora maioria dos adeptos de futebol que representa, não cedendo mais à ganância pelo lucro e não atribuindo mais fases finais das suas grandes competições a países que tenham condições de atropelar os direitos humanos com a facilidade com que eles podem ser obliterados no Qatar.