Laporta e o pensamento totalitário
Joan Laporta denunciou a anterior gestão do FC Barcelona à Fiscalia, mas não avançou com processos na justiça. Não quer dividir o clube. E isso faz zero sentido.
Joan Laporta, que em Março completará um ano desde o regresso à presidência do FC Barcelona, denunciou ontem “uma série de delitos gravíssimos”, apontando para indícios de “falsidade contabilística, administração desleal e apropriação indevida” por parte do elenco diretivo anterior, liderado por Josep Maria Bartomeu. O atual líder do clube, que no início da época passou por momentos complicados, sem conseguir sequer inscrever os jogadores que contratara depois de perder Messi, falou durante a apresentação da auditoria que foi feita ao clube pela Kroll e cujas conclusões enviou para a Fiscalia, o ministério público de Espanha, recusando no entanto intentar uma ação criminal contra a anterior gestão, alegadamente porque isso sairia “muito caro”. Esta é a parte que me custa compreender, mesmo à luz da vontade de pacificação interna da imensa massa adepta de um clube.
As conclusões da auditoria apontam para vários ilícitos. Laporta denunciou pagamentos feitos a intermediários por “serviços inexistentes”, “comissões de 33 por cento em transferências” de jogadores, “importâncias desproporcionadas e abusivas” pagas a um mesmo escritório de advogados, “distorção deliberada” dos preços de mercado de jogadores, contando as vendas como receita e diluindo as compras em amortizações, “pagamentos de compensações a pessoas para que não contestassem a modificação do Plano Geral Metropolitano” e ainda um “pagamento ilegítimo de 15 milhões de euros a outro clube por um direito de preferência simulado”, que na verdade não seria mais do que um suborno para que esse clube desistisse de apresentar queixa na Federação por assédio ilegal a um jogador. É muita coisa e, mais, é muita coisa de que também já ouvimos falar em Portugal. Os clubes de futebol fazem parte de uma indústria, estão inseridos numa economia global, e não é possível imunizá-los contra este tipo de ilícitos, que acontecem por todo o lado e em todas as áreas verdadeiramente significativas dessa economia.
A grande diferença é que em qualquer outra área da economia os suspeitos destes crimes são imediatamente assinalados e vistos como lesivos para a sociedade, enquanto que nos clubes de futebol o sentimento de pertença das pessoas as leva a negar as evidências até ao último momento e a defender a inocência com a sua própria honra. O próprio Laporta percebeu isso e, quando enfrenta uma época decisiva para a sua estratégia futura – que muito depende da capacidade da equipa para chegar a uma das primeiras quatro posições na Liga, qualificando-se para a próxima Champions – optou por uma solução a meia haste, que é a entrega das conclusões da auditoria à administração fiscal. E diz mais: “não desejo mal a ninguém e estou aberto a falar com Bartomeu”. A última coisa de que Laporta precisa é da divisão da massa adepta que vai ao estádio entre “bartomistas” e “laportistas”, razão pela qual subscreve a tese segundo a qual mais vale uma má paz do que uma boa guerra. E, no entanto, nada disto faz sentido.
A fixação pela união de um clube é uma variação de um pensamento totalitário que nenhum de nós admite quando se trata de outros universos aos quais pertencemos, como a nação ou a indústria. Não defendemos um culpado de crime económico porque ele é português como todos nós – pelo contrário, queremo-lo punido, porque as burlas dele acabarão por custar caras ao erário público. Não defendemos um mau profissional só porque ele exerce o mesmo mister que nós – pelo contrário, queremo-lo punido, para não dar má fama à profissão que queremos dignificar. Porque razão havemos então de defender para lá dos limites do razoável um presidente de clube que comprovadamente infringiu a lei, seja em proveito próprio – e em prejuízo do clube – ou de forma a poder dar ao clube meios ilícitos que lhe permitam ter mais sucesso? Dir-me-ão que é irracional, porque o futebol não pertence ao domínio do que é racional, deve ser vivido com paixão e não com razão, mas esse é um universo no qual não consigo entrar.
Não consigo equiparar os representantes de um clube ao emblema que eles episodicamente representam, quanto mais não seja porque anos volvidos poderão estar em representação de outro. Os jogadores e os treinadores, que são abertamente profissionais, já entenderam e interiorizaram isto. No dia em que os adeptos e os dirigentes o fizerem também, teremos um futebol melhor. Não será um futebol sem amor à camisola e ao emblema. Será, isso sim, um futebol sem irracionalidades que só o prejudicam.
A crise no Barça é tão profunda que dificilmente se livrará tão cedo dela. Terá a equipa capacidade para lutar? Terá Xavi, para além do seu colé, força para levar o barça aos patamares de glória de outros tempos? Duvido, mas basta a bola não bater no poste...
Completamente de acordo ! 👏👏 Cumprimentos