Juntar Guedes à equação
O adversário não permitia tirar grandes conclusões, mas Guedes voltou bem e bate à porta do onze. A questão é onde? Tendo em contra o engarrafamento na luta pela sua posição, pode haver improviso.
A velocidade, a receção orientada, a intensidade que pode meter no jogo e a forma como vê a baliza farão sempre de Gonçalo Guedes uma opção a ter em conta para o ataque do Benfica. De volta de lesão que ainda datava da época passada, o internacional emprestado pelo Wolves já fez cinco minutos no Estoril e agora somou-lhes mais 45, de bom nível, frente ao Lusitânia, nos Açores. O adversário não era uma potência – longe disso – e ele já entrou com a equipa em vantagem, mas o passo seguinte pode ser a titularidade, quem sabe se já amanhã, contra a Real Sociedad, em que a necessidade de pontos certamente aguçará o engenho do treinador do Benfica. Se não for já, há-de certamente acontecer mais à frente – e a questão é a função a partir da qual Roger Schmidt o fará evoluir no seu 4x2x3x1 mais ou menos imutável. Guedes pode ocupar qualquer uma das quatro posições da frente e, ainda que tenha um histórico bastante mais associado à saída das faixas laterais, o contexto deste Benfica pode bem levá-lo a entrar como ponta-de-lança, onde ainda ninguém conseguiu calçar devidamente as chuteiras de Gonçalo Ramos. Musa tem o poder físico para chocar ou galgar espaço e oferece ainda trabalho sem bola, mas faltam-lhe argumentos na ligação com os companheiros. É um excelente finalizador, cuja utilização, no entanto, ganha força nos momentos finais das partidas, com os jogos mais partidos, onde se torna mais eficaz no ataque à profundidade. Cabral fez o primeiro golo neste jogo, parece o jogador tecnicamente mais forte dos três que o Benfica tem para o lugar, mas pede um jogo de cruzamentos e de exploração dos corredores laterais que os encarnados têm dificuldade em oferecer-lhe – mais ainda se jogarem com Aursnes como lateral esquerdo. Aparentemente mais mole no tempo de reação à perda e menos moldado para a contra-pressão que o treinador quer ver, o homem que veio da Fiorentina continua a parecer um peixe fora de água. Tengstedt parece o menos dotado dos três: já se viu como nove, contra o Estoril, sem impressionar, mas também como segundo avançado a partir da esquerda, agora, nos Açores, e a coisa correu-lhe ainda pior. E não é só a falta de uma solução óbvia a empurrar Guedes para ali. É que a luta pelas posições atrás do ponta-de-lança está muito congestionada neste Benfica. Há Di María e Neres, que são sobretudo criativos. Há Rafa, que tem um perfil acelerativo. Há João Mário e Aursnes, o primeiro mais cerebral, o segundo mais descomplicador e forte na reação à perda, mas que dão à equipa a possibilidade de se recompor melhor em momento de organização defensiva, pois ao contrário dos outros não deixam o par de médios desamparados no preenchimento dos 70 metros de largura do relvado se o adversário ultrapassar a primeira linha de pressão. No plano meramente desportivo, o do rendimento, tenho poucas dúvidas: o ponta-de-lança que melhor encaixa neste Benfica, como ele está agora, é Gonçalo Guedes. É a solução ready made. Se no futebol houvesse tempo, a adaptação de Guedes a ponta-de-lança seria errada. A questão é que não há. Pedem-se resultados para ontem. O que não invalida que se olharmos para a gestão de plantel, essa adaptação em nome do imediatismo possa parecer quase um crime, porque se desbaratam mais de 30 milhões de euros de pontas-de-lança (20 de Arthur, sete de Tengstedt e cinco e meio de Musa) em favor de um jogador que o Benfica não poderá rentabilizar – quanto mais não seja porque já o fez há quase sete anos, quando lo vendeu pelos mesmos 30 milhões ao Paris Saint-Germain.
Franco, Pote e o lado esquerdo. Sérgio Conceição e Rúben Amorim inventaram em grande, nos jogos da Taça de Portugal contra o Vilar de Perdizes e o Olivais e Moscavide. O grau de dificuldade apresentado pelos adversários era diminuto e isso foi visto como a oportunidade ideal para testar soluções mais criativas. O FC Porto apareceu com André Franco a jogar como lateral-esquerdo, o Sporting com Pedro Gonçalves a ala esquerdo. Ambas as situações tinham enquadramento teórico e prático a recomendá-las. Sobretudo quando têm Wendel a jogar, os dragões fazem o lateral esquerdo aparecer muito no espaço interior, quase como um médio, até para permitir que, mais à frente, Galeno tenha a linha lateral para poder arrancar. Franco interpretou bem a missão, marcou o primeiro golo e assistiu para o segundo, acabando por se tornar instrumental na vitória. Por sua vez, ainda no jogo contra o FC Arouca, quando ficou reduzido a dez, o Sporting passou a atacar em 4x4x1, com Pedro Gonçalves na esquerda – de onde, de resto, arrancou o cruzamento para Morita fazer o golo da vitória. E, no entanto, depois do jogo, a adaptação de Franco foi vista como um sucesso e a de Pote como uma manobra sem sentido. É que há uma diferença gigantesca: enquanto o FC Porto passa bem sem André Franco ao meio, a este Sporting, sobretudo quando está amputado de Gyökeres e tem Edwards em noite de não lhe apetecer chatear-se muito, fazem muita falta as ligações estabelecidas por Pedro Gonçalves no espaço interior. O que disse Amorim no final – que não estava à espera de um adversário com linha de cinco, o que veio a forçar o encaixe de Pedro Gonçalves no lateral-direito – faz até pensar se aquilo que ele queria ver não seria um 4x4x2, com Matheus Reis a lateral, para voltar a ver o criativo jogar a partir do corredor. Ainda assim, parece um desperdício.
Os cabeças-gordas e a banalização do tomba-gigantes. Ainda há dias, no Futebol de Verdade, vos falei do Cabeça Gorda, a equipa alentejana da então III Divisão, que em 1980 eliminou o FC Penafiel da Taça de Portugal. Mais de 40 anos depois, a memória perdura e é comum a uma geração, como percebi depois num post de Instagram do Luís Freitas Lobo, que é rapaz do meu tempo e também guarda a mesma memória com ele. Mas porquê, se ainda neste fim-de-semana caíram quatro equipas da I Liga na primeira eliminatória em que entraram na Taça de Portugal? E se ainda há um ano, na mesma ronda, tinham sido sete os primodivisionários eliminados? Desta vez baquearam o Rio Ave e o Farense, eliminados pelo Torreense e pelo Vilaverdense, do segundo escalão, o GD Chaves caiu nos penaltis perante o Canelas, da Liga 3, e o Moreirense foi afastado pelo USC Paredes, do Campeonato de Portugal, que equivale ao que era a antiga III Divisão, a do Cabeça Gorda. As proezas dos tomba-gigantes modernos talvez até estejam destinadas a ficar na memória de quem as viu ao vivo, já vão baralhar-se com outras lembranças na mente de quem as acompanhou pela TV, mas não serão recordadas nem daqui a 40 dias, quanto mais daqui a 40 anos, por quem só as ouviu contar. E as razões para esta banalização são inúmeras. A Taça de Portugal está diferente. Por um lado, as equipas de terceiro e quarto escalão estão mais fortes, já trabalham bem, quase tão bem como as principais. Por outro lado, estas, com o assoberbamento dos calendários, começaram a rodar os plantéis muito para lá do que é recomendável – e isso também contribui para diminuir as diferenças. Ainda há muito mérito nos tomba-gigantes, como é evidente, mas o facto de eles serem cada vez mais vulgares faz com que se percam na espuma dos tempos. A magia do relato tem dificuldades em perdurar nestes tempos de múltiplas experiências – foi o Mundo que mudou e nós mudámos com ele. E o Cabeça Gorda ainda é do outro Mundo.
O que acabei por concluir neste seu raciocínio sobre o Guedes é que o Benfica tem um vastissimo leque de qualidade e os jogadores ao brigarem pela titularidade, apenas aumenta a competitividade na equipa.