Haaland, Gyökeres, o presente e o futuro
Afinal, diz que Haaland não joga nada. E que Gyökeres só fica no Sporting se lá estiver Amorim. Esta é uma viagem ao que é, ao que parece que vai ser e ao que nos querem convencer que aconteceu.
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Ponto de ordem à mesa: Gyökeres não é Haaland. São ambos nórdicos, avançados goleadores, jogadores de perfil semelhante, possantes nas cavalgadas que empreendem pelo meio-campo adversário, mas o norueguês do Manchester City chegou muito mais cedo à fama e a grandes clubes e competições, tendo por isso sido muito mais testado e sendo hoje mais valorizado, enquanto que o sueco só aos 25 anos jogou numa I Divisão e nas competições da UEFA, o que se reflete no diferente valor que tem para o mercado. A entrevista concedida hoje ao Record por Hasan Çetinkaya, o agente do goleador do Sporting, mostra a tentativa de colar o jogador mais influente da Liga Portuguesa ao norueguês num outro patamar – o da gestão de carreira. Diz o empresário que Gyökeres veio para o Sporting por causa de Rúben Amorim e que agora o seu futuro está ligado ao que for decidido na carreira do treinador. E se quanto à primeira parte da conversa estamos todos de acordo que ele fez muito bem, porque no modelo de Amorim Gyökeres se tornou um avançado muito melhor do que alguma vez tinha sido, quanto à segunda não convém embarcar na estranha tendência que parece vulgarizar-se e que manda esquecer coisas ainda assim relevantes. Como os contratos.
Viram Haaland jogar ontem no Bernabéu, contra o Real Madrid, nos quartos-de-final da Liga dos Campeões? Não? Ele esteve lá, de facto, mas aquela não era a noite dele, sempre anulado por Rüdiger, um centralão que, concentrado, se mostrou tão forte, rápido e possante como o norueguês, limitando-o a um remate (com 0.07 de xG) e uma tentativa mal-sucedida de drible. Acontece aos melhores e não significa que Pep Guardiola não entenda nada de futebol ou que Mino Raiola, o falecido agente que desenhou ao detalhe cada passo da carreira de Haaland até desde antes do dia em que ele se tornou notícia por ter feito nove golos num jogo com as Honduras, no Mundial de sub19 de 2019, tenha errado nas opções que assumiu. À data dos nove golos num só jogo, o norueguês tinha 18 anos e estava já na reserva do Red Bull Salzburg, em cuja equipa principal rapidamente confirmou as credenciais que já mostrara no Molde FK. Mas foi Mino Raiola quem decidiu que o passo a seguir passaria por Dortmund e que, por fim, quando estivesse pronto, ele assinaria pelo Manchester City de Guardiola. Quem não se lembra das imagens da excursão europeia do empresário e do pai do jogador, um ano antes da transferência, para desde logo avaliarem as possibilidades imensas que então se abriam a um goleador que tinha uma cláusula de rescisão acessível?
Haaland teve um impacto imediato no Manchester City. Marcou 52 golos em 53 jogos no ano da sua reunião com Guardiola, ajudando o City a ganhar a Premier League, a FA Cup e a Liga dos Campeões. Foi falado e era o favorito de muitos para a Bola de Ouro, que depois foi dada a Messi. Mas este ano caiu de rendimento. Desaprendeu? Foi o modelo construído por Pep para o rentabilizar que deixou de fazer sentido? Nada disso. Sobretudo, foram as equipas e os treinadores adversários que, beneficiando de mais tempo de estudo, começaram a achar mais formas eficazes de o contrariar, forçando o City a uma reinvenção que não é individual mas coletiva. O papel de Guardiola não é fazer Haaland brilhar, mas sim fazer o City ganhar. Num primeiro momento, o treinador achou – e teve razão – que a forma mais eficaz de atingir o seu propósito era através do aproveitamento das caraterísticas de Haaland. Mas se o futebol deste perdeu com a descoberta de um antídoto, a equipa encontrou outras armas, sejam elas as trocas posicionais entre Bernardo e Foden, as intromissões de Stones em zona de criação, a presença de Álvarez entrelinhas, os passes de De Bruyne ou as conduções em drible de Grealish, tudo debaixo do comando de Rodri.
O City está na luta pela repetição do triplete e já conquistou a Supertaça europeia e o Mundial de clubes – no qual Haaland nem jogou. O norueguês, contudo, tem – e é verdade que num contexto bem mais difícil – menos golos (30/36) e muito menos assistências (6/14) do que Gyökeres no seu ano de estreia no Sporting. Apesar de ser dois anos mais velho, este reduziu bastante a diferença para o molde inspirador nos vários parâmetros de avaliação usados, por exemplo, pelo SofaScore. O impacto de Gyökeres no futebol do Sporting e na Liga Portuguesa foi até mais brutal do que o de Haaland no City e na Premier League – e não foi só porque o físico em Portugal faz mais diferença do que em Inglaterra, onde o futebol sempre foi muito menos atreito a vícios do tipo do não-me-toques-que-senão-eu-caio-e-é-falta. O sueco deu ao futebol da equipa de Amorim a possibilidade de exploração da profundidade, em ataques repetidos às costas dos laterais os dos centrais exteriores (em linhas de cinco), mas é muito mais do que isso. É ainda capaz de levar a equipa em condução através do drible, de receber de costas para a baliza e aguentar a bola de forma a servir de plataforma para a subida dos companheiros no campo e de manter um nível de eficácia na finalização que não se lhe conhecia no passado. Gyökeres vai esta época na Liga com um índice G-xG (o que subtrai aos golos que marcou os que, em função das finalizações que protagonizou, devia ter marcado) positivo de 6.4. Na época passada terminou o Championship, pelo Coventry City, com um valor de 1.5 positivos, ainda assim o melhor de toda a sua carreira. Haaland, só para comparar, vai esta época com 2.8 negativos, mas fechou a anterior com 7.6 positivos, também um recorde da sua carreira.
A gestão de carreira de Gyökeres por parte de Çetinkaya, no ano em que o avançado fez 25 anos, foi um sucesso retumbante. Porque basta ver, por exemplo, jogar a seleção sueca, no seu 4x2x3x1, com Kulusevski e Elanga bem abertos nas alas, para ver que, não sendo metade do jogador que é no Sporting, o jogador perde muito do seu impacto. E isso nem tinha de ser necessariamente mau, se a equipa ganhasse – coisa que não faz, razão pela qual nem estará no próximo Europeu, onde de resto também não está a Noruega de Haaland e Ødegaard. O que isto nos diz acerca do futuro é que, tal como com Haaland, a adaptação dos adversários às caraterísticas do jogador levará a que dificilmente Gyökeres volte a encontrar, na carreira, um contexto tão favorável como o deste ano, com um modelo no qual encaixou que nem uma luva e opositores impreparados para o deter. Onde Çetinkaya falhou, porém, na comparação com Raiola, foi na visão a mais longo prazo. Se, quando tinha hipóteses mais poderosas, o falecido agente italiano escolheu levar o seu atacante para Dortmund aos 19 anos, fixando-lhe uma cláusula de rescisão de 60 milhões de euros e mantendo-o em hasta pública durante ano e meio, Çetinkaya teve, isso sim, a sorte de Amorim e o Sporting terem posto olhos em Gyökeres, porque foi isso que finalmente permitiu ao jogador disparar em termos de mercado, mas não a inteligência de lhe fixar uma cláusula de rescisão que o torne atrativo para os clubes estrangeiros que nele estejam interessados.
Quando, em Julho de 2022, o Manchester City pagou 60 milhões por Haaland, o norueguês ia fazer 22 anos e estava avaliado pelo algorítimo do Transfermarkt em 150 milhões. Quando Hasan Çetinkaya disse ao Record que o futuro de Gyökeres estará ligado ao de Amorim, assim sugerindo que o jogador só fica no Sporting se o treinador também ficar, este está prestes a fazer 26 anos e está avaliado pelo mesmo algoritmo em 55 milhões – e atenção que viu o seu valor quadriplicar nos nove meses desde que chegou a Portugal. O algoritmo não faz lei, como é evidente. Gyökeres pode ficar ou sair do Sporting no Verão. Mas continuo a achar que o que vier a acontecer dependerá sempre muito mais da visão que o Sporting, com ou sem Amorim, tiver para ele. Quererá vender, nem que seja abaixo da cláusula, para minimizar os efeitos de uma previsível redução de impacto à qual nem Haaland escapou? Ou mantê-lo, para reforçar a sua posição de negociador duro no mercado e capitalizar em cima da veneração dos adeptos pelo sueco? Tudo é válido. Certezas, só há uma. É que, apesar de tudo, está Gyökeres muito mais perto de Haaland do que Çetinkaya de Raiola.
O futebol hoje em dia é isto. Assina contratos milionários, mas depois querem mandar nos valores que o clube deve aceitar, de quando querem entrar e sair. Interessa aqui a vontade do clube, não do empresário, nem do jogador. Podem ter mais liberdade, claro, reduzindo os salários.