O império contra-ataca
O futebol coloca frente a frente o mais tradicional de todos os clubes e a maior ameaça à velha ordem. A questão é que, no Real Madrid, a tradição se renovou. E no City fazem-se coisas à antiga.
Palavras: 1141. Tempo de leitura: 6 minutos.
Há mais do que a vontade de abafar o adversário pelo ruído no pedido feito pelo Real Madrid à UEFA para fechar o teto do Santiago Bernabéu, hoje (20h, Eleven Sports1), na receção ao Manchester City, com que os dois maiores candidatos a ganhar a Liga dos Campeões abrirão os quartos-de-final da competição. Jogar de teto fechado é uma forma subliminar que o Real Madrid terá de explicar aos senhores do Abu Dhabi que também já entrou na modernidade, que ali, paredes meias com o tradicional Paseo de la Castellana, estão a enfrentar mais do que os fantasmas de Di Stefano, Kopa ou Gento ou o treinador mais titulado da competição, Carlo Ancelotti, ainda por cima no dia em que ele vai ouvir pela 200ª vez o hino da prova enquanto espera que os seus jogadores assumam posições em campo. Há muito mais do que a vontade de revanchismo do império madridista face à coça que apanhou no ano passado dos homens de Pep Guardiola, também eles muito para lá de serem uma simples aliança rebelde, porque se movem pela relva com um apelo permanente à tradição do jogo apoiado. No Real Madrid-Manchester City de hoje veremos sobretudo um tira-teimas entre as duas melhores equipas europeias do momento.
Esta será a quarta vez que as duas equipas se defrontam nos últimos cinco anos. Em 2020 foi sem espectadores nas bancadas que o City ganhou os dois jogos, ambos por 2-1, nos oitavos-de-final. O ano de 2022 foi o da épica remontada, a mostrar os valores da tradição que nunca deixam o Real Madrid morto: 4-3 para o City no Ettihad, 1-0 com golo de Mahrez no Bernabéu até surgir Rodrygo, qual guerreiro Jedi, a desafiar as probabilidades, com dois golos aos 90’ e aos 90+1’. No prolongamento, Benzema, de penalti, fez o 3-1 e pôs o Real Madrid na final que o City fizera por merecer durante grande parte da eliminatória. No ano passado, foi a vingança do novo poder, com duas tareias a que os resultados nem deram a devida expressão. Um golo de Vinicius Júnior ainda mascarou uma primeira parte de sentido único no Bernabéu – o da baliza de Courtois – mas foi depois cancelado pelo empate de De Bruyne e pela destruição (4-0) do Ettihad, na segunda mão. Na soma das duas primeiras partes, o Real Madrid acertou 48 passes no meio-campo adversário, praticamente um a cada dois minutos. Não há definição melhor para massacre no futebol moderno do que essa semi-final que conduziu os dois clubes ao que eles são hoje – e aparentemente estão atualmente muito mais perto um do outro do que nesse mês de Maio de 2023.
As razões são simples de compreender. Além de uma estrutura empresarial moderna a contrariar a ideia de tradicionalismo puro, o Real Madrid entendeu nessas duas noites que precisava de fazer as coisas de maneira diferente. Apesar de todos os jogadores que estiveram no arranque da eliminatória de 2023 e voltarão a estar hoje – Carvajal, Rüdiger, Kroos, Camavinga, Valverde e os próprios Rodrygo e Vinicius… – se apresentarem um ano mais velhos, a idade média do onze que se espera venha a ser colocado em campo por Ancelotti baixou dois anos e meio, para uns 26 anos que são muito mais compatíveis com as exigências da alta competição. Do outro lado, o que aquela vitória significou, sobretudo se somada à depois conseguida sobre o Inter Milão na final de Istambul, foi um aplacar da exigência de vitórias que vinha nas letras pequeninas do contrato não escrito mas na mesma feito com os milhões do Abu Dhabi. Era preciso ganhar. E ganhar era ao mais alto nível. Era evidente que havia uma dívida a pagar. A malta da minha geração lembrar-se-á da série “Fame”, em cujo genérico uma das professoras da escola de artes em que todo o enredo se passava dizia algo como “Querem fama? Pois a fama custa. E aqui é onde começam a pagar. Em suor!”. Também os milhões de investimento estrangeiro que trouxeram o City de volta das divisões secundárias e depois ao galarim europeu têm de ser pagos, mas é em troféus. E é normal que assim que o clube pôs finalmente as mãos na “orelhuda” isso tenha matado um pouco a sede de vitórias, não só dos jogadores como até do próprio Guardiola, que perseguia este troféu e a necessidade de contrariar a acusação injusta de que só o ganhara por ter Messi no super-Barcelona.
É curioso que tanto Ancelotti como Guardiola tenham usado ontem a expressão “alívio” para descrever o que se sente depois de uma vitória. Se uma derrota é sofrimento, uma vitória é o quê? Felicidade? “Infelizmente, não. É um alívio. Há felicidade se ganhas um título, mas jogo a jogo há apenas alívio. E o sofrimento, a pressão, o stress... são aquilo que te mantém vivo”, explicou o treinador italiano. “Como clube, foi um alívio”, disse por sua vez Guardiola, ontem também, acerca da possibilidade que teve de erguer a primeira Taça dos Campeões pelo City. “No plano histórico somos um clube recente, mas podemos dizer que já a ganhámos. E se já a ganhámos podemos ganhá-la de novo”, explicou o técnico catalão, misturando um pouco a noção de história com tradição no topo da Europa do futebol. O City não é um clube recente, mas é um clube que não anda há muito tempo a discutir troféus internacionais do mais alto calibre. E o que esta época nos dirá é se esse “alívio” descrito por Guardiola funcionou como uma injeção de crença, levando a equipa a entrar sempre de igual para igual com as potências imperialistas como o Real Madrid, ou como uma inibição da fome de vitórias que pode levar a equipa a doses indesejáveis de condescendência, transformando o seu futebol apoiado num exercício contemplativo incompatível com a pressão que a equipa sentiu e aplicou nos jogos da época passada.
“Jogam?”, perguntou na brincadeira Guardiola a Vinicius Júnior junto à linha lateral, como que para extravasar o que sentia e que disse aos seus jogadores depois dos 4-0 ao Real Madrid no Ettihad. A cena pode ver-se no documentário “Together: Treble Winners”, que foi produzido pela Netflix acerca da temporada do Manchester City: “Parabéns! Agora vocês são a melhor equipa do Mundo”, afirmou Guardiola aos jogadores. Tal como então, sendo verdade que esta ronda dos quartos-de-final coloca já, frente-a-frente, as equipas que reúnem mais condições para ganhar a Liga dos Campeões, não é líquido que a que sair por cima acabe por conquistar a competição. Mas é mais ou menos seguro que se diga que dali sairá a melhor equipa do Mundo.
Ser necessário pedir autorização para algo tão simples como fechar o tecto do Estádio, é tão absurdo como não puder ter um estádio completamente fechado, que seria bom para a chuva. A FIFA e a UEFA a perder tempo com palermices, pormenores. Mas adiante.
É o jogo entre quem começou a mentalidade "globe trotter" no futebol - o Real Madrid que iniciou com os Galáticos - e um dos novos ricos, que levou a UEFA a criar a hipocrisia do "fair play" financeiro, não fosse outro pequeno armar-se em esperto e querer pôr em causa a hegemonia dos grandes. Da minha parte, apostei forte no City, no Arsenal e no PSG, na fantasy, a ver se não me lixam.