Félix e Inácio, pois então
A introdução de quatro jogadores novos permitiu a Martínez testar soluções e manter o foco. Por mais que discordemos da cristalização do grupo, há que reconhecer que Martínez está a gerir bem os 24.
Acabou por ser fácil a vitória de Portugal em Zenica, um 5-0 à Bósnia que permitiu à seleção superar com distinção o teste da descompressão, já que se tratava do primeiro jogo após a qualificação. Faltava garantir o primeiro lugar do grupo, mas até pela noção de que ele viria na mesma, nem que fosse na próxima jornada, na visita ao Liechtenstein, esse objetivo parecia curto no plano motivacional, pelo menos se comparado com os que se colocavam à frente da equipa da casa: havia a possibilidade de ser a primeira a tirar pontos a Portugal e, sobretudo, de voltar a entrar nas contas do apuramento, uma vez que Luxemburgo e Eslováquia jogavam entre si e não podiam ganhar as duas. Roberto Martínez geriu bem o momento, com quatro alterações ao onze e o foco naquilo que os que entravam podiam dar à equipa – e todos deram bastante. É certo que a pressão do opositor foi sempre mais descoordenada do que a feita pela Eslováquia, mas a presença de Danilo e Gonçalo Inácio deu à seleção uma qualidade na saída de bola que ela não teve com Palhinha e António Silva, forçando o desvio de Rúben Dias para a esquerda. O central canhoto está diretamente ligado ao segundo e ao terceiro golos, com passes progressivos a bater a pressão, enquanto que o médio mostrou sempre conforto na posse, a tranquilizar quem estava à sua frente, mesmo que depois lhe falte a dimensão mais física de Palhinha. É certo que, tal como a sua primeira linha foi descoordenada, a última também nunca primou pelo acerto – e a presença de Pjanic no duplo-pivot de médios também não ajudou à capacidade de recuperação e de cobertura a meio-campo –, mas João Félix deu sempre à equipa uma qualidade de decisão que ela não tinha conhecido no desafio anterior, sendo essa outra diferença abismal entre a transformação de um imenso caudal ofensivo em golos na noite de Zenica e o resultado incerto do Dragão. A colocação de Leão na esquerda, sempre com o lateral do seu lado a jogar por dentro para lhe dar a largura de que ele necessita para arrancar, acaba por proporcionar a Félix o contexto ideal para – mesmo que em posição e sistema diferentes – prolongar na seleção o bom momento que está a viver em Barcelona. E não tem de se perder isso com a entrada no onze de Bernardo Silva, que ontem foi poupado. Ontem, Roberto Martínez aproveitou para ver Otávio como segundo médio, uma posição que tem sido e que em condições normais voltará a ser de Bruno Fernandes, que surgiu mais à frente, a jogar pela direita. O luso-brasileiro esteve seguro, difícil de desarmar, como sempre, e só não se lhe viu aquela que é a sua imagem de marca, que são os passes de rotura. Mas deixou ver que há vida mesmo que se tire o comando a Bruno, o jogador mais decisivo desta qualificação, ainda assim autor de mais um golo e de mais uma assistência. A goleada de Zenica mostra que, por mais que se discorde da cristalização do grupo – e eu já disse e escrevi que discordo –, Martínez está a gerir bem os seus 24 jogadores. E deixa a Bósnia com gente a bater à porta da titularidade e segurança nas alternativas para quando lhe faltarem os homens mais importantes.
Os golos de Ronaldo. Os jogos contra a Eslováquia e a Bósnia permitiram a Cristiano Ronaldo o segundo duplo bis da fase de qualificação. Coisa banal, portanto? Não. Há que ter em conta que o anterior tinha sido obtido logo na jornada de Março ante oposição bastante mais frágil, como indiscutivelmente é a das seleções do Liechtenstein e do Luxemburgo. E que antes disso ele só tinha conseguido pelo menos quatro golos em dois jogos seguidos contra o Luxemburgo e o Qatar, em 2021, ou nas partidas envolvendo a modesta Lituânia, em 2019. Sim, dois dos quatro golos que marcou agora foram de penalti, mas a verdade é que houve mais em Ronaldo do que os golos – e o fundamental foi mesmo o facto de a equipa começar a sentir que pode passar sem ele. É nesse aparente desprezo da influência tradicionalmente exercida no jogo por Ronaldo que pode residir o renascimento de Ronaldo na seleção. Ontem, nos 45 minutos que contaram – a segunda parte nem precisava de ter sido jogada, tão irrelevante se tornou com os 5-0 ao intervalo – houve apenas uma situação que recuperou a relação que a seleção tinha com o capitão, que foi uma tentativa de passe vertical de Félix para ele, logo a abrir, quando tinha Bruno Fernandes à direita e em melhor posição. De resto, Ronaldo pareceu ser mais um entre onze, o que estranhamente o favorece a ele. Ronaldo vai chegar ao Europeu com 39 anos e vindo de uma Liga de exigência mínima, como é a saudita, mas se isso podia significar afrouxamento para muitos, nele será mais uma razão para manter o hiper-foco que já revela neste momento em relação à fase final. Já não mostra as acelerações pós-drible de outros tempos, é verdade, não vai embora dos defesas quando mete a bola no espaço, mas soma experiência. E desde que todos a canalizem para o lado certo, estou convencido de que o capitão ainda pode ser muito útil à equipa na Alemanha.
O futebol como pretexto. Não chegou ao fim o Bélgica-Suécia, provavelmente porque não havia já muita coisa em disputa, que a Bélgica entrou já apurada e só uma conjugação bem estranha de resultados podia levar os suecos a cair do terceiro lugar em favor do Azerbaijão. Ao saberem do ataque terrorista ocorrido duas horas antes do jogo nas imediações do estádio Rei Balduíno, em Bruxelas, e da morte de dois compatriotas, os suecos terão manifestado a vontade de ficar por ali, no que foram secundados pelos belgas. O jogo acabou ao intervalo, com um golaço de Gyökeres a solo e um penalti de Lukaku a empatar. E que diferença entre o comportamento solidário dos adeptos forçados a ficar no estádio por um par de horas devido a questões de segurança e o dos que, há quase 40 anos, naquele mesmo local – no velhinho Heysel Park – se bateram até à morte de dezenas de entre eles, na final da Taça dos Campeões de 1985, entre Liverpool FC e Juventus. Os adeptos do futebol mudaram muito, não só porque os jogos e os estádios para este tipo de eventos de perfil elevado passaram a ser rodeados de medidas de segurança excecionais, como também por ter mudado muito o próprio conceito de turismo associado aos jogos: há 40 anos iam hooligans centrados na possibilidade de virem a ser notícia pelas batalhas campais entre eles, hoje vão famílias que aproveitam para ver as cidades que visitam. Infelizmente, o que isso não muda é a categoria de pretexto ideal em que o jogo se transforma para este tipo de atos ignóbeis. Se na década de 70 era a contestação ao governo Thatcher e à sua política económica a tornar o futebol num caldeirão de problemas, hoje é o simples facto de aglomerar muita gente nas cidades – e quase sempre gente que tem dinheiro – que o coloca como alvo fácil. O que aconteceu ontem não difere a não ser na escala do que sucedeu na noite de Novembro de 2015 em que foram o concerto dos Eagles of Death Metal, no Bataclan, em Paris, e o França-Alemanha, no Stade de France, a servir de rastilho ao ódio. O problema, mais uma vez, não é de raiz futebolística mas social. E é um problema fulcral nas sociedades modernas.