É uma questão de qualidade
A grande diferença entre o Sporting e o Manchester City é de qualidade. E não se resolve de ponteiro na mão, mudando o sistema na preleção antes do jogo. Foi isso que nos explicou o jogo de ontem.
A goleada do Manchester City ao Sporting, ontem, aconteceu por duas razões: porque o City é, hoje em dia, muito melhor do que o Sporting e porque, além disso, foi extremamente eficaz na primeira parte. Em condições normais, não é possível ao Sporting nem a nenhuma equipa portuguesa bater-se, neste momento, com os maiores colossos da Europa – como se viu nos 9-2 em dois jogos do Bayern ao Benfica ou nos 7-1 do Liverpool FC ao FC Porto, ainda na fase de grupos. Rúben Amorim não estava a ser sonso quando elencou as diferenças entre os dois coletivos no final e nelas incluiu a qualidade do treinador, um dos elementos que poderá, eventualmente, contribuir para a criação de “condições anormais” que atenuem a diferença. Mas Amorim sente que não tem, ainda, capacidade ou horas de trabalho com o grupo para fazer isso sem sacrificar a identidade da equipa, a identidade que permitiu aos leões ganhar quatro dos últimos cinco troféus em disputa em Portugal. A modernidade acelera as coisas, mas não se chega a Guardiola de um dia para o outro.
Ainda assim, um dos momentos definidores do que foi o jogo de ontem passou por uma desvalorização do papel dos treinadores. Aconteceu na transmissão da Eleven Sports, quando o Ricardo Rampazzo mostrou que estivera atento à análise do Tomás da Cunha e perguntou a Pep Guardiola se tinha dado indicações a Cancelo para fazer o seu papel de forma diferente do habitual, surgindo mais por fora e não tanto por dentro, como é usual. Guardiola reconheceu que sim, que foi assim que aconteceu, mas encolheu os ombros e menorizou o seu próprio papel: “Ele percebeu que ali é que estava o espaço”. Ser grande treinador é isto. E não, não estou a pensar em falsas modéstias ou na desvalorização do papel de “mestre da tática”. Estou a pensar, outrossim, na forma como um treinador faz crescer taticamente os seus jogadores para os levar a tomar melhores decisões com o jogo em curso. E isso não se consegue de ponteiro na mão, na preleção antes do jogo, através de um rasgo de génio, daqueles que muitos de nós achámos que estávamos a ter ontem, frente ao televisor, quando dizíamos para quem queria ouvir baboseiras como “isto resolvia-se era mudando para 4x5x1 com jogo direto para o Slimani”. O crescimento, a este nível, só se consegue com horas de trabalho no campo de treinos dedicadas a uma ideia e ao seu aperfeiçoamento.
Quando Rúben Amorim rejeita sacrificar a identidade e a estrutura da equipa para estes jogos, mas ao mesmo tempo diz que sabe que para ter sucesso a este nível tem de ter mais largura numa primeira linha de pressão, não está a ser masoquista. Está na cara de toda a gente que se Pote e Sarabia ficassem dentro, os laterais saíam por fora, e que se os atacantes do Sporting abrissem, eles ligavam jogo por dentro. Naquele momento, Amorim estava a repetir o que tinha dito na véspera: “Nós aqui estamos na escola primária e eles na universidade”. Estava a dizer a todos os “mestres da tática” que andam por aí – aqueles que talvez não ganhassem ao City mas seguramente não fariam tamanha figura de urso, mudando o sistema – que não se chega à universidade com cábulas, quanto mais não seja porque lá os testes são feitos com consulta a fontes. Na universidade não se empina conhecimento, não se decoram manuais, porque na universidade o sucesso depende da nossa capacidade de utilizar e interpretar esse conhecimento. E isso, lá está, só se consegue com muitas horas de trabalho, as mesmas horas de trabalho que foram a maior vantagem comparativa do Sporting face aos rivais na Liga do ano passado – e, repito, muito mais importante para os leões do que poder descansar a meio da semana por não estarem na UEFA foi terem tido tempo no campo de treinos para trabalhar uma ideia.
O grande problema para as equipas portuguesas, aqui, é a relação entre qualidade e tempo. A reação admirável dos adeptos do Sporting nos minutos finais do jogo, cantando em apoio a uma equipa que estava a ser goleada, mostra que para eles o caminho é este, que querem prosseguir neste trilho – e não, não acho que seja demonstração de falta de cultura de vitória, como já vi escrito. A questão é que nem tudo depende deles ou da vontade dos dirigentes manterem os treinadores e de lhes darem as necessárias horas de trabalho, como o FC Porto tem feito com Sérgio Conceição e o Sporting parece inclinado a fazer com Amorim. O tempo que falta às equipas portuguesas é o tempo para preservar a qualidade, porque assim que os jogadores chegam ao nível da universidade, vão estudar lá para fora. Para podermos voltar a ter equipas nacionais em fases decisivas da Liga dos Campeões falta muita coisa, a começar por um contexto mais favorável ao negócio, que permita que voltemos a ser economicamente competitivos. Sete dos 22 titulares nas duas equipas que ganharam os jogos de ontem (Nuno Mendes, Danilo, Di María, Ederson, Cancelo, Rúben Dias e Bernardo Silva) já por cá passaram e iniciaram aqui o caminho para o estrelato.
Mesmo tendo a pergunta sido completamente fora de contexto, porque estávamos na Liga dos Campeões, Bernardo Silva mostrou o caminho quando apontou à “vergonha” que foram os incidentes do Dragão. O que trava a competitividade do futebol português é a necessidade de ganhar a qualquer preço, que vem destruir o ambiente em torno do jogo e o torna desaconselhável a sponsors, dessa forma levando os melhores jogadores a sair para o estrangeiro em busca de uma vida melhor. O que trava a competitividade do futebol português não é, ao contrário do que podem querer fazer-vos acreditar, o apoio formidável a equipas que estão a ser goleadas, como o que deram ontem os adeptos leoninos. Isso é bom. O que trava a competitividade do futebol português são muito mais os sentimentos que estão por trás dos assobios que se ouviram no início do jogo sempre que Cancelo, Rúben Dias ou Bernardo Silva tocavam na bola. Isso é que faz mal ao jogo.
Muito bom. Parabéns pela análise!
A diferença na qualidade dos executantes é grande e é justificada com o maior (muito maior) poder financeiro do City, no entanto, esta diferença pode ser combatida em campo com intensidade e concentração competitiva que não é possível ter quando os jogos grandes em Portugal têm 40min de tempo útil, mais de 30 faltas, simulações e ronhas constantes, cercos ao árbitro e protestos por tudo e mais um par de botas. Enquanto isto não mudar não há mais receita para ninguém e mesmo a centralização dos direitos de TV pouco ajuda a resolver. Ontem o árbitro deixou jogar, os jogadores não andaram a fazer simulações nem a protestar, o jogo foi corrido com poucas paragens e mesmo com o City a não forçar muito o SCP nunca conseguiu acompanhar o ritmo.