As três dimensões da proeza do Al Hilal
O Al Hilal eliminou o Manchester City do Mundial de clubes e há três maneiras de olhar para o tema. Importante é que se separe a terceira, a do terreno de jogo, das outras duas, que são morais.

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Não vi o Manchester City-Al Hilal em direto, que não estou preparado para meter na minha rotina diária jogos de futebol entre as duas e as quatro e meia da manhã, mas acordei cedinho, hoje, e fui surpreendido pelo resultado, um 3-4, após prolongamento, que funcionou como uma espécie de bomba atómica na perceção neutral do que deve ser o normal equilíbrio de forças. É claro que não se podem tirar ilações de um jogo – mas na verdade não é só um jogo, que o Al Hilal já tinha empatado com o Real Madrid, na fase de grupos. E aqui não funciona a regra que manda dizer que os clubes europeus não estão a levar este Mundial a sério, que se há quem o faça são precisamente aqueles que, como o City e o Real Madrid, passaram pela temporada de 2024/25 sem ganhar nada e, por isso, ali chegaram em busca uma glória que lhes salvasse a face. O Al Hilal é para se levar a sério – e contra mim falo, que nunca dei um minuto de atenção aos jogos da Liga saudita, pois também não estou preparado para meter na minha rotina semanal jogos entre mercenários que abdicaram dos objetivos desportivos em busca de forrar a carteira.
Há coisa de um ano, antes do Europeu de seleções, estive à conversa com Jorge Jesus e pedi-lhe que me desenhasse o que seria o onze dele para a seleção nacional. Ele fez e manteve as que se esperavam vir a ser as opções de Roberto Martínez, incluindo Ronaldo no centro do ataque, mas introduzindo depois Ruben Neves a meio-campo. Normal, pensei. É jogador dele no Al Hilal e, sendo Jesus um dos mais fortes embaixadores do sportswashing saudita, como o é ainda o próprio Ronaldo, naturalmente quer puxar o valor da Liga para cima. Depois, em Setembro, na sequência do Portugal-Escócia, foi Ruben Neves quem contestou a avaliação que todos na Europa fazemos da Liga saudita. “Se compararem os meus dados de GPS do futebol saudita com os do futebol inglês [ele jogou, antes, no Wolverhampton WFC], corro mais no futebol saudita, com a diferença de que corro com 40 graus”, disse o médio. A malta ouviu, pensou, mas não tinha como ter a certeza, que os dados de GPS não andam por aí à disposição de quem quer fazer estas comparações. Seja como for, em Maio, antes da Final Four da Liga das Nações, em conversa informal com Roberto Martínez, perguntei-lhe: “Isso é mesmo assim?”. E o selecionador nacional, com cuja equipa técnica os clubes partilham todos esses dados, confirmou.
Se fiquei convencido? Não. Quem acede ao meu servidor de Discord sabe que um dos temas que mais conversas ali motiva é a defesa da Liga saudita feita pelo Ricardo Pinho, um dos meus subscritores, que até participou uma vez num Futebol de Verdade VIP com um fundo de ecrã feito de uma bandeira saudita. Até hoje nunca percebemos, todos os outros, se ele diz aquelas coisas a sério ou a brincar. Mas a carreira do Al Hilal neste Mundial pode servir como um abre-olhos a muitos de nós. Haverá ali efeito de treinador? Inegavelmente. Aliás, basta perceber o que fez o Inter Milão depois de ter perdido Simone Inzaghi, substituindo-o por Christian Chivu: o finalista vencido da última Liga dos Campeões foi batido pelo Fluminense e já está fora do Mundial. Inzaghi, em contrapartida, segue com o Al Hilal para os quartos-de-final, na metade aparentemente menos forte do quadro. Lá estão, com os sauditas, o Fluminense, o Palmeiras e o Chelsea, ao passo que do outro lado vamos ter um Paris Saint Germain-Bayern Munique e, faltando definir o último duelo, ele pode vir a ser um Real Madrid-Borussia Dortmund. Esta conjugação de fatores já nos leva a todos a admitir o até aqui inadmissível. E se o Al Hilal se apurar para a final?
Não alinho na tendência de misturar as coisas, como faz a generalidade dos observadores mais críticos da FIFA de Gianni Infantino – quase todos ingleses, curiosamente vindos de um país que tem forte investimento saudita e emirático no seu campeonato e o come sem estrebuchar muito... Porque aqui convém separar factos de julgamentos éticos e morais e de análises ao que se passa no campo de jogo. São três planos diferenciados e é preciso gostar muito pouco ou nada de futebol para os misturar.
Uma coisa é reconhecer que a formação da Liga saudita e o investimento irresponsável que lá se faz é uma forma de sportswashing, de propaganda a um regime onde não são respeitados alguns direitos humanos elementares. Isso é um facto. Já a forma como chamo irresponsável ao investimento – irresponsável não que lhes falte dinheiro, mas pelo que esse investimento pode causar no mercado global do futebol, puxando-o para cima de forma artificial e sem critério – é fruto de uma análise subjetiva. As transferências para a Liga Saudita estão muito sobrevalorizadas – e para o entender basta ver que o Al Ahli pagou mais por um Galeno que na altura tinha a idade que tem agora Györekes do que o Arsenal quer pagar pelo goleador sueco. Qual é o problema? A lei da oferta e da procura funcionou. As regras de mercado que eu próprio estabeleci em reflexão recente (aqui) também: os sauditas pagam mais porque esse é o preço para convencerem os jogadores a abdicar de objetivos desportivos que para eles seriam importantes. E isso não só subverte depois os preços que os clubes europeus têm de pagar por transações entre eles – funciona o termo de comparação – e pode levar alguns à ruína, para acompanharem o mercado, como nos transporta para a dimensão seguinte da questão: o branqueamento feito ao regime por parte de jogadores e treinadores de futebol pagos de forma principesca, como Ronaldo, que ainda esta semana disse que era português mas pertence à Arábia Saudita.
A análise a esta segunda dimensão, tal como à cumplicidade entre os milhões injetados por Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro do trono saudita, e a estratégia de domínio global montada pela FIFA, já pressupõe um julgamento moral. Eu acho que são erradas, porque a origem do dinheiro importa. Da FIFA dizem que são certas, porque se eles não estivessem lá a fazer de vigilantes, os atropelos aos direitos humanos seriam ainda maiores. Ou porque esse dinheiro, depois, pode ser usado para melhorar condições de muitas federações recônditas ou do futebol de formação. Da mesma forma, eu acho que é errado fazer este Mundial, pago pelo dinheiro que os sauditas injetaram na DAZN, num final de época em que os jogadores deviam estar de férias, porque há um ano houve Europeu e Copa América e daqui por um ano haverá Mundial de seleções. Mas da FIFA dizem que é certo porque a prova permite, por fim, pôr frente a frente realidades intercontinentais e isso fazia falta ao futebol. Ou porque era só atrasarem o início dos campeonatos nacionais e da Liga dos Campeões, para se acomodar tudo. É subjetivo e cada um de nós pode escolher um lado...
Por fim, uma terceira dimensão da questão é a do campo de jogo. Esta também é subjetiva, que pode gostar-se mais ou menos de um jogador, de um treinador ou de uma equipa. Roger Schmidt, por exemplo, nunca gostou particularmente de Marcos Leonardo, que até à chegada de Pavlidis, foi durante um ano suplente de Arthur Cabral e até de Tengstedt. E estamos a falar do avançado que ontem fez dois golos ao City. Mas o erro, aqui, é misturar as coisas. Uma coisa é achar que aquilo que os sauditas estão a fazer no futebol é moralmente condenável, que terá consequências nefastas no mercado ou na saúde dos jogadores. Outra é achar que, só por causa disso, o Al Hilal não joga nada. Não sei, não tenho uma opinião definitiva sobre o tema, mas tenho a certeza de que já meterei na minha rotina essa avaliação dos quartos-de-final para a frente.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira (excetuando feriados) até 14 de Julho, um dia depois da final do Mundial de clubes. A 15, o primeiro dia útil de defeso, sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia, numa periodicidade que eu gostava que fosse diária mas que ainda não sei se conseguirei manter tão frequente - até porque há um livro novo em fase de conclusão e me atrasei com a fase de escrita... A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h), eventualmente não diária. A minha crónica de opinião será um dos conteúdos, esses sim diários, oferecidos apenas a subscritores Premium, mas poderá alternar com outros textos. A partir de 4 de Agosto, também, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que este será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.