A disrupção do mercado
A pegada portuguesa no mercado global de transferências está em disrupção por causa de um fator novo: a falta de urgência na venda. Parece que há por aí quem ainda não o tenha entendido.

Palavras: 1411. Tempo de leitura: 8 minutos (áudio no Telegram).
Os casos de Gyökeres, mas também de Diomande, de Carreras ou outros que possam surgir, por exemplo, com Diogo Costa, voltam a centrar as nossas atenções no mercado, na condição que as nossas maiores equipas terão para fazer valer essa originalidade latina que são as cláusulas de rescisão dos seus maiores ativos. A perceção do mercado global foi construída numa altura de maior debilidade lusitana, durante uma conjuntura de que a competência na valorização dos seus craques e a estabilização financeira tem permitido aos nossos clubes virem a afastar-se – ainda que o FC Porto esteja um pouco atrasado nesta matéria. E é um pouco este desvio-padrão das condições de mercado que depois vem causar problemas, frustrações e crises, por mais que elas sejam também criadas em laboratório pela garganta demasiado funda de agentes interessados em apressar negociações. Como todos os tempos disruptivos, este fará tremer os menos preparados. Mas a diferença estabelecer-se-á pela capacidade de resistir à pressão.
Primeiro ponto: as cláusulas de rescisão, criação espanhola que, em parte, foram importadas por portugueses e nalguns casos por italianos, são uma referência muito raramente aplicada em negociações. Tanto que são quase sempre números irreais – e por isso mesmo se contarão pelos dedos das duas mãos as vezes que foram batidas em toda a história do futebol mundial. Ainda assim, elas estão lá, nos contratos que são livremente assinados pelas duas partes. Os jogadores sabem desde o início que aquele é o preço irrecusável da sua liberdade. Gyökeres sabe que, por 100 milhões de euros, vai logo para onde quiser, nem que seja vender farturas no Mittsommar. Diomande tem plena consciência de que por 80 milhões também pode deixar o Sporting e assinar por qualquer outro clube, mesmo que seja o Crystal Palace. Carreras tem o preço fixado em 50 milhões desde o dia em que foi resgatado pelo Benfica e é isso que o Real Madrid sabe que precisa de pagar para o levar. Os três têm outro ponto em comum: vieram de clubes de II Divisão ou que para lá caminhavam (isto no caso do espanhol, que jogava no Granada, último da sua Liga). Os clubes deveriam estar-lhe gratos pelo rendimento desportivo que apresentaram? Sem dúvida. Tal como eles teriam de estar gratos aos clubes pelo crescimento desportivo que lhes foi proporcionado. Do que se fala aqui, porém, não é de gratidão – e nem a gratidão sentida pelos clubes implica que agora tenham de lhes facilitar as saídas nem a gratidão dos jogadores leva a que se vejam constrangidos a ficar nos mesmos clubes para o resto das suas carreiras.
Do que falamos aqui é de negócio. De mercado.
Vale, por isso, a pena recordar o que fixa o preço de mercado de um jogador – e não, não é o que está no Transfermarkt. Ainda que essa possa ser uma referência válida, o sucesso passa por vender acima dela e comprar abaixo, conseguindo resultados desportivos. Passa por saber e conseguir subverter o mercado. Já o escrevi aqui várias vezes (esta foi a última): o preço de mercado de um jogador advém de fatores como o seu rendimento desportivo, os anos que tem de contrato (dos quais depende a segurança do detentor do passe ainda poder vir a rentabilizá-lo financeiramente no futuro), a idade (na perspetiva de o clube comprador ainda poder também revender-lhe o passe ou, no mínimo, tirar rendimento dele por um período longo), a urgência do clube vendedor, nascida das suas contas, a necessidade mais ou menos premente do comprador e a capacidade (e a vontade) do agente que conduz as negociações para abrir mais ou menos portas, assim estabelecendo um leilão mais ou menos concorrido. As pessoas tendem muito a comparar preços de venda para estipular se um jogador é melhor do que o outro ou para se indignarem contra o exagero que um valeu face ao rendimento e ao valor menor da transação de outros, mas há aí um erro de base. Aliás, há dois. O primeiro erro é fazer depender o valor do jogador apenas do que foi o seu rendimento desportivo, que na realidade constitui apenas a primeira variável. E o segundo é o de encarar estas coisas como se o verdadeiro objetivo dos nossos clubes fosse o de vender jogadores. E não é. Ou pelo menos já o foi muito mais. O objetivo dos nossos clubes é o de ganhar campeonatos com as contas no positivo. De onde se infere que se as contas têm boas perspetivas de estar no lado certo, desaparece a pressão de vender e a verdadeira pressão passa a ser a de ganhar jogos e Ligas.
Das coisas que me deixaram mais abesbílico no caso Gyökeres foi ler e ouvir gente dizer que o maior interesse na transação era o do Sporting. Porque não é. Como não é interesse do Benfica desfazer-se de Carreras. E talvez não seja – aqui tenho mais dúvidas face à situação que André Villas-Boas catalogou como de rotura financeira iminente – interesse do FC Porto vender Diogo Costa. Que o empresário de Gyökeres tenha via aberta para a maior parte das redações do Mundo de maneira a espalhar anonimamente informações acerca de uma crise de proporções gigantescas, de uma greve do jogador, eu entendo, ainda que ache que depois o jornalismo devia cumprir a sua parte e que aqui raramente o fez. Agora que o mesmo senhor continue a entrar assim nas mentes das pessoas, a ponto de lhes influenciar as opiniões, já me faz muito mais confusão. Gyökeres tem contrato até 2028, Diomande até 2027, Carreras até 2029. O Sporting e o Benfica vão estar na Champions – e os encarnados ainda juntaram a esse rendimento o que lhes virá do Mundial de clubes. Em condições normais, há zero pressão sobre os vendedores a não ser a que é feita por jogadores e agentes. E é isso que está a funcionar como principal fator de disrupção do mercado nestes negócios, porque o mercado global estava habituado a clubes portugueses focados acima de tudo na venda de jogadores, nem que fosse para irem comprar outros a seguir.
O resultado foi que, por mais que os jogadores queiram sair, não lhes restará senão cumprirem os contratos. Podem fazer birra, não direi uma greve total mas pelo menos uma espécie de greve de zelo, metendo pouco empenho em cada treino, em cada ação, até que os transacionem? Podem, sim. Se quiserem destruir as carreiras, porque se a outra parte se mostrar igualmente inflexível teriam pela frente um período mais ou menos longo de paragem. E aqui não funciona a lógica do “se ele pressionar, deixa lá facilitar, para não se perder o investimento”. Porque aquilo que os clubes fizerem nestes casos condicionará a perceção que o mercado e os futuros jogadores transacionáveis virão a construir quando for a vez deles saírem. Isto não quer dizer, atenção, que as saídas tenham de ser feitas pelas cláusulas de rescisão – ainda que devesse conduzir-nos a uma lógica de olharmos para as ditas cláusulas de outra forma, instituindo, por exemplo, cláusulas de valor variável, que baixavam à medida que o contrato se aproxima do fim e há menos valor de compra remanescente a amortizar. Quer apenas dizer que uma das variáveis responsáveis pela fixação do valor de mercado sorri hoje mais aos clubes portugueses de topo do que sorria há uns anos e que todo o mercado tem de se adaptar a isso. Gyökeres, Diomande e Carreras acabarão por sair? É possível que sim. Mas as suas saídas terão de ser enquadradas nesta nova lógica.
O paradigma do Sporting mudou quando Ruben Amorim instituiu a estabilidade como fator determinante e Varandas passou a vender menos porque não precisava de comprar tanto. O Benfica ainda compra demasiado, o que lhe vem de um processo eleitoral permanente e da necessidade da administração andar sempre em campanha, a apresentar reforços para melhor convencer os sócios, mas precisa de olhar para os próximos anos à luz de um novo paradigma, um paradigma em que tem imensos jogadores da formação para rentabilizar – o que recomenda comprar menos também. Foi isto que o mercado lá fora ainda não entendeu. E é dessa incompreensão que vem a frustração de quem quer fazer negócios.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira (excetuando feriados) enquanto houver equipas portuguesas no Mundial de clubes. No dia após o derradeiro Último Passe de 2024/25 sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia. A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h) e apenas para subscritores Premium. A partir daí, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.
Boa análise, António Tadeia, principalmente na "urgência" de vender jogadores. No que toca ao Sporting, por exemplo, o clube vendeu Quenda e Essugo por 74 milhões, e terá quase 19 milhões com a entrada directa na Champions. Isso perfaz 93 milhões. E ainda há necessidade de vender, pelo menos este ano? O empresário do Gyokeres e o próprio jogador deveriam ter isso em conta.