As queixas de Kökcü
A entrevista em que Kökcü critica Roger Schmidt e o Benfica há-de resolver-se com uma multa e uma conversa. Mas devia ter sido evitada. Não pela censura, mas pelo entendimento das razões de todos.
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As palavras contundentes de Kökcü acerca de Roger Schmidt e da administração do Benfica vieram no pior momento porque, por causa de uma birra, afastaram o jogador mais caro da história do clube de uma partida que acabou por se revelar difícil. Mas também não foram o fim do mundo, porque em Rio Maior o Benfica conseguiu na mesma uma vitória, as coisas que ele disse não são irreversíveis e até já está aí a pausa competitiva para os jogos de seleção, seguida da receção ao lanterna vermelha, o GD Chaves, que pode permitir resolver tudo sem prejuízo. O que a entrevista do médio turco ao De Telegraaf nos revela é a necessidade que ele teve de justificar perante os adeptos que o idolatram e viram ser-lhe atribuída a distinção de melhor jogador da Eredivisie em 2022/23 as razões pelas quais não é figura de primeira no clube que escolheu para continuar a carreira. Mas não só: demonstra ainda a incapacidade do treinador alemão, que já o conhecia de o defrontar pelo PSV, para lhe dar o mimo de que ele se julga merecedor, e da administração para conversar antecipadamente com o técnico acerca do papel que este lhe ia dar na equipa para acautelar aquele que foi o seu maior investimento de sempre.
O problema aqui não é Kökcü ter dado uma entrevista não autorizada ou ter dito o que pensa assim que se viu livre do controlo que as estruturas comunicacionais dos nossos clubes tratam de impor aos jogadores. A cultura neerlandesa em torno do futebol – e Kökcü é turco mas já nasceu e viveu sempre nos Países Baixos – é tradicionalmente muito mais livre-pensadora do que esta realidade censória em que se move o futebol português, na qual todos os jogadores e treinadores dizem sempre as mesmas coisas aborrecidas, empurrando o debate mediático para a única coisa que sai fora da caixa, que são as tontices ditas por comentadores-adeptos acerca das arbitragens. O problema não é Kökcü ter dito o que pensava. O problema é que ele pense como pensa e que ninguém no Benfica tenha, primeiro, percebido o que ele pensa e, depois, tratado de conversar com ele para melhor o enquadrar. Porque uma coisa ali é a mania de vedeta, que tem de ser cortada pela raiz, e outra são as questões táticas, que na verdade tinham de ser conversadas e muito bem avaliadas.
Ver um jogador internacional reclamar porque não lhe fizeram uma apresentação no estádio ou porque não lhe deram a importância que foi dada a outros jogadores – e aqui a comparação tem de ser feita com Di María, cujo regresso mexia tanto com os sentimentos dos adeptos que juntou uma multidão em frente ao Estádio da Luz – é risível. A primeira coisa que apetece dizer-lhe é: “Tem mas é juízo!”. Mas tendo em conta os valores implicados nas aquisições dos jogadores admite-se uma abordagem mais cautelosa, no sentido de lhe entender a mente e de a focar para o rendimento. Quando muito, daí pode sobrar a sensação de que não terá sido completado o trabalho de scouting, nomeadamente na avaliação psicológica de um jogador que ia tornar-se o mais caro da história do clube. Até porque antes de ser a estrela na equipa do Feyenoord, no ano do título neerlandês, Kökcü já tinha passado por um período em que era recorrentemente substituído e por uma fase de problemas de origem psicológica, devidos ao trauma provocado por uma paragem digestiva antes de um jogo (a história da recuperação do médio por parte da equipa técnica de Arne Slot está contada neste episódio dos Reis da Europa).
Mas a questão vai muito para lá desse detalhe. Grande parte da argumentação de Kökcü veio centrar-se na missão que lhe era conferida em campo – e a esse assunto voltarei com mais detalhe amanhã, com dados concretos e uma análise técnica mais aprofundada. O brilho do turco no Feyenoord foi sempre conseguido num meio-campo a três, com um jogador mais defensivo a proteger-lhe as costas. Em 2021/22 esse jogador era Aursnes, com Guus Til e Kökcü a funcionarem como interiores ofensivos, o primeiro de mais chegada, o turco mais dado ao último passe. Depois, quando o norueguês saiu para o Benfica e Til para o PSV, foi ele o ponto de continuidade num meio-campo que passou a contar com Wieffer como elemento mais recuado e passou a ter no polaco Szymanski o homem mais goleador. O problema é que o Benfica de Schmidt não joga com três mas sim com dois médios. Quer dizer que a adaptação de Kökcü a esse sistema é impossível? Não, nem por sombras. Mas tem de ser conversada e bem trabalhada. E, a julgar pelo que afirmou o jogador na entrevista, não o foi. Ou então, das duas uma: ou, nessas conversas, ele não disse ao técnico o que afirmou agora na entrevista ou este fez orelhas moucas ao que o jogador lhe dizia, confiante de que com o tempo tudo se resolveria.
Nada disto é um bicho de sete cabeças, mas tudo passa por trabalho tático que não terá sido feito. Da mesma forma que Enzo Fernández foi um encaixe perfeito nas ideias de Schmidt, pois tinha em doses idênticas intensidade defensiva e ofensiva, a escolha de Kökcü para lhe calçar as botas não seguiu a política de perfis que se impunha para que tudo funcionasse sem mudanças. Uma das bases do modelo que deu o título ao Benfica foram as acelerações de Rafa com bola por dentro, o que logo à partida extingue as duas vagas no ataque, porque por muito que Schmidt o queira, não dá para jogar com o ribatejano de forma regular como avançado de referência. Se partirmos do princípio de que, além disso, o Benfica quer ter dois extremos – e as presenças de Di María, Neres, Tiago Gouveia e Rollheiser no plantel parecem indicar que sim – isto quer dizer que Kökcü encontraria o seu espaço um pouco mais atrás, na dupla de meio-campo. Ora não só não há assim tantas diferenças entre um meio-campo com dois mais um e um meio-campo com um mais dois como, no Feyenoord, Kökcü foi sempre mais segundo médio do que terceiro. Qual é o drama, então?
O drama é que, no caso do Benfica, a questão é agravada por mais dois fatores. Por um lado, pela pouca predisposição dos quatro da frente para o trabalho de recuperação defensiva – o que aumenta a carga de trabalho defensivo do segundo médio. Por outro, pela emergência do talento de João Neves, que já levou ao desvio de Aursnes para uma posição diferente da que sempre foi a dele e conduziu durante muito tempo ao sacrifício de Florentino (e escrevi sobre isso aqui). Kökcü não só pode como deve ser segundo médio, que é a jogar mais atrás que ele reúne mais condições para a sua imagem de marca, que é o passe progressivo. Mas para a equipa o absorver aí, tem de mudar as coisas em seu redor. No fundo, aquilo de que se queixa Kökcü é de que o Benfica não se adaptou ao seu próprio futebol. Tinha de o fazer? Não, nem por sombras. A não ser que de repente fosse ele o maior investimento da história do clube... Que até foi o que aconteceu.
Após ler este artigo acabo por concordar com as alterações no último passe. Apesar de por um lado o última passe só se debruçar sobre um tema, acabo por concordar que assim deu para aprofundar bastante mais este tema em concreto.