As chaves do dérbi
O dérbi da Taça foi marcado por uma clamorosa superioridade tática do Sporting a construir a vantagem e por uma extraordinária força mental do Benfica a reduzi-la. Ambos têm aqui os pontos a melhorar.
Palavras: 1676. Tempo de leitura: 8 minutos.
O Sporting-Benfica de ontem foi ao mesmo tempo a prova de que há muitas formas de ganhar um jogo de futebol e de que o cérebro humano funciona de muitas maneiras diferentes. Pode ganhar-se um jogo graças à superioridade tática, física, técnica ou mental – e nem todas elas são constantes sequer por 90 minutos, quanto mais de um desafio para outro. A vitória do Sporting (e há Flash com o meu comentário ao jogo para ver, aqui) começou numa evidente supremacia tática, na preparação minuciosa de um plano de jogo para enfrentar um rival que não fez adequar o seu à realidade senão ao fim de 61 minutos. A primeira parte, que de acordo com a GoalPoint acabou com 30 ações leoninas (e dez remates) na área adversária contra três (e um remate) das águias, mostrou como uma equipa sabia o que vinha fazer e a outra ficou à espera de ver o que o jogo dava. O jogo foi durante muito tempo de sentido único porque os jogadores verde e brancos sabiam ao mais ínfimo detalhe como o interpretar e os encarnados, se traziam essas instruções, depressa constataram que elas não serviam. Começava tudo na saída de bola dos leões, que muitas vezes nem precisava do guarda-redes para fazer vincar a superioridade dos três de trás sobre os dois homens que o Benfica adiantava para os condicionar. O que se via era Rafa a correr como um louco, a tentar pressionar aqui, ali e acolá, às vezes com o auxílio de Kokçu, mas Quaresma, Coates e Diomande a encontrarem sempre o homem livre para ligar com os médios. Recebendo facilmente de frente para o jogo – e aqui as condições técnicas da receção orientada de Morita e Hjulmand foram importantes também –, os médios de Amorim encontravam espaço para decidir onde ligar e para fazer sobressair o outro equívoco tático da abordagem defensiva de Schmidt: qual era o papel de Di María e Neres? A ideia do alemão era manter a superioridade de quatro para três atrás, da sua linha defensiva sobre os três homens que o adversário tinha na frente. Assim sendo, era frequente vermos Edwards atrair Aursnes e Pedro Gonçalves chamar Bah. A questão é que o Sporting não ataca com três. Fá-lo sempre com cinco, graças à entrada na última linha dos alas, e muitas vezes com seis, porque, à vez, os médios vão inserir-se entre o avançado e o ala. Estivesse Edwards em dia-sim ou tivesse Matheus Reis a capacidade de definição no último terço que na maior parte das vezes lhe falta e o Sporting podia ter conseguido uma vantagem mais ampla neste período em que – e isto é quase uma heresia – Di María chegou a parecer um defesa-direito, fechando o corredor nesses momentos em que Bah ia dentro. O lance do golo de Pedro Gonçalves mostra isso mesmo, um Bah a acompanhar a excessiva inclinação de todo o setor defensivo encarnado para o lado da bola, provocada pela inserção de Hjulmand no bico da área, o movimento do marcador a ganhar-lhe as costas, junto ao segundo poste, e o desespero de Di María a tentar correr para lá depois de já ter tentado fechar a zona de penalti. O lance do segundo golo, o de Gyökeres, por sua vez, mostrou que o Sporting não vinha preparado apenas para o ataque organizado e que também feria nas chegadas rápidas: belíssimo passe de trivela de Catamo e cavalgada do sueco em cima de Otamendi, ontem muito menos inteligente do que António Silva nos duelos com ele. O jogo parecia arrumado – e como estavam as coisas a dúvida parecia ser se o ficaria igualmente a eliminatória. Só que, lá está, nenhuma das condições fundamentais para ganhar um desafio são constantes. E bastou ao Benfica corrigir uma para fazer valer outras duas.
Um avançado, um golo e tudo muda. Os problemas do Benfica no dérbi não se ficaram pela inadequação da sua abordagem defensiva, tanto à frente como atrás. Eles estenderam-se por muito tempo à capacidade que a equipa (não) demonstrou para ter bola. Quem me ouve ou lê já sabe que não sou adepto da colocação de Rafa como unidade mais avançada da equipa (já escrevi sobre isso aqui), porque se ele é forçado a jogar de frente para a equipa e de costas para a baliza adversária perde a capacidade para fazer aquilo em que é melhor, que é acelerar com bola nos pés pelas entrelinhas. A isso soma-se o facto de não ter capacidade para segurar bola, para receber no pé e servir de plataforma de apoio para a subida da equipa. Privado dessa unidade fundamental, o Benfica só pode render em transições rápidas nas quais consiga solicitar o ataque de Rafa à profundidade, fazendo-o receber no espaço – o que vem reduzir a vantagem competitiva do ribatejano e amarra demasiado a equipa atrás, tornando-a mais um onze de reação do que ação. Foi tudo isso que se viu ontem. E não foi só isso que mudou quando, aos 61’, Schmidt chamou Tengstedt ao jogo e finalmente dotou a sua equipa de uma referência na frente. Tengstedt, curiosamente, nem é tão forte neste jogo de apoios como seria, por exemplo, Arthur Cabral, mas ao mesmo tempo é mais capaz de pedir a bola na profundidade e, sobretudo, de pressionar a saída do adversário. Não foi porque Tengstedt entrou que o Benfica marcou um golo – e entre uma coisa e a outra passaram sete minutos. O Benfica marcou porque, tal como sucedeu no lance do primeiro golo ao Portimonense, foi finalmente capaz de libertar os criativos e de lhes dar asas à condição técnica. Di María saiu do seu casulo, soltou-se no corredor oposto, fez um cruzamento fantástico que era um convite a uma finalização como a que Aursnes meteu nas redes leoninas. E aqui chegou a condição em que este Benfica é indiscutivelmente superior a este Sporting: a mental. Uma equipa que trazia o plano tão bem elaborado e estudado deixou-se abater pelo medo. Por essa altura, em 331 minutos que as duas equipas tinham jogado uma contra a outra desde que no banco estão estes dois treinadores, o Sporting somava 168 de vantagem e um de desvantagem. Mas ainda não tinha ganho nenhum jogo: empatara dois e perdera um, sempre com recuperações feitas pelo Benfica à conta desta crença. A confirmar isso mesmo, Di María só teve de esperar três minutos para fazer o 2-2, depois anulado pelo VAR. E, ainda que a interrupção para análise do lance possa ter contribuído para uma maior estabilização emocional dos leões, fica claro que este é o aspeto em que Amorim mais precisa de trabalhar, de maneira a evitar que a equipa se perca na montanha-russa que a leva, em poucos minutos, dos exagerados olés que chegou a ouvir das bancadas eufóricas à depressão que lhe provoca a incapacidade para segurar um resultado contra o rival.
E domingo há mais. O jogo acabou por não ser decisivo para sabermos quem estará na final da Taça nem para influenciar o contexto do campeonato, mas dele hão-de ter saído uma série de constatações importantes para os dois treinadores. Roger Schmidt deve ter tirado ilações para definir o plano tático para o jogo do Dragão, que poderá ter de enfrentar já atrás do rival, se o Sporting tiver ganho antes ao Farense, em Alvalade – e o foco estará mesmo na primeira destas dimensões, a tática, que na emocional a equipa responde geralmente bem. O Benfica terá pela frente uma equipa do FC Porto que não precisou de acelerar muito para vencer o Santa Clara e atingir as meias-finais da Taça – também há Flash do jogo para ver, aqui –, contra a qual já viu falhar o plano do ataque móvel na Supertaça, que só ganhou depois de mudar e após um arranque penoso, em que o adversário lhe foi muito superior. Para o FC Porto, este vai ser o jogo do ano, porque lhe pode reabrir as hipóteses, já não diria de lutar pelo título, que recuperar pontos a dois adversários será complicado, mas de sonhar com o segundo lugar e as rondas preliminares da Champions. Antes, a Rúben Amorim caberá gerir a sua equipa nos planos emocional e físico. Combater a euforia dos que acham que depois de ganharem ao Benfica tudo será fácil e gerir a carga de uma equipa que ontem pareceu acabar em défice, sobretudo nas posições em que lhe é mais complicado mexer, como as de meio-campo. Na segunda parte, houve até uma ocasião em que Gyökeres se deixou ir a passo quando um dos seus colegas carregava a bola para a frente. E isso é tão novo que chega a ser intrigante.
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