As camadas inferiores da novela Jesus
Na novela Benfica-Jesus-Flamengo, há o que todos vemos, diariamente, nas TVs, e aquilo que os protagonistas verdadeiramente pretendem. Tudo se resume a perceber quem puxa os cordelinhos.
Marcos Braz terá, finalmente, tomado um cafezinho e aproveitado para pôr a conversa em dia com Jorge Jesus. Há notícias de que o vice-presidente do Flamengo, muito certamente acompanhado pelo diretor de futebol Bruno Spindel, foi bater à porta do treinador do Benfica, e se ninguém a não ser os próprios, ou o advogado de Jesus, Luís Miguel Henrique, saberá o que se disse entre o cafezinho e o chocolate negro ou o biscoito, todos sabemos o que pode transpirar da conversa: que o Flamengo quer o regresso de Jesus, que Jesus está concentrado nos clássicos que aí vêm, que depois logo se vê e que o Benfica aguarda pacientemente pelas duas coisas. Mas o fundamental fica para segundas núpcias. Porque em todas as novelas bem feitas, só no fim é que se percebe quem está a mexer os cordelinhos.
Numa das entrevistas nas quais se desdobrou nos últimos dias – e felizmente não teve de ir tomar café com todos os jornalistas a quem prestou declarações – Braz desmistificou a sua presença em Lisboa para assediar um treinador com contrato. “Então Luís Filipe Vieira não foi ao Brasil falar com Jesus quando ele ainda estava sob contrato como Flamengo?”, perguntou. E tem razão. Foi. O que é estranho, porque o mundo mudou muito nos últimos anos e não há necessidade nenhuma de atravessar o Atlântico para isso – há telefone, vídeo-conferência e a possibilidade de conduzir as conversas através de representantes, dessa forma evitando o aborrecimento que é estar sempre a aparecer nas notícias, hoje filmado aqui, amanhã ali, depois de amanhã acolá. Só Vieira poderá explicar por que razão foi ao Brasil convencer Jesus a voltar, da mesma forma que só Braz pode explicar por que razão veio agora a Portugal com a mesma intenção – e tanto um como o outro podem até dizer que acreditavam que só o conseguiriam recorrendo a um magnetismo pessoal irresistível, mas eu reservo para mim o direito de acreditar ou não.
Estou, portanto, convencido de que tanto num caso como noutro o argumento tem mais do que a camada superior. E para entender as camadas inferiores é fundamental perceber uma coisa: quem é o argumentista? Porque entre Flamengo, Jesus e Benfica, todos têm pontos a ganhar com esta novela, mas também todos têm algo a perder. No fim, sairá por cima quem tiver calculado melhor os riscos, controlado melhor os danos e obtido aquilo que queria. Que não tem necessariamente de ser o que as pessoas pensam que se quer. Aparentemente, o que está em cima da mesa é a batalha de dois clubes por um treinador. Mas será mesmo isso? Será a melhor forma do Flamengo conseguir Jesus continuar a dar entrevistas e a chamar a atenção para a presença da sua comitiva em Portugal? Quantas entrevistas deu Vieira quando foi ao Brasil para resgatar Jesus? Se deu menos – e não me custa adivinhar que assim terá sido – isso foi porque era antipático e Braz uma simpatia, porque as televisões brasileiras não quiseram saber dele ou porque ia focado na missão e entendeu que ela seria prejudicada pelo excesso de exposição?
Marcos Braz tem sempre uma palavra amiga para os jornalistas que o descobrem – o que me leva a admitir que o objetivo dele até pode ser outro. E é aí que o argumento se adensa. Terá a visita de Braz a Jesus sido apenas para desviar atenções do que realmente quer e – porque não – para fazer um favor ao amigo Jorge, que no passado já viveu vários casos em que se deixou querer fora de casa para tirar vantagem na relação com o clube que defende? Isso, do ponto de vista do Flamengo, porém, tem uma clara desvantagem: é que Jesus ainda tem uma grande moral no Rio de Janeiro e se Braz aparece com um treinador ‘portuga’ qualquer depois de deixar encher o balão da expectativa com a ilusão de que levaria Jesus, os adeptos vão cobrar-lhe isso. Se assim fosse, Braz teria tudo a ganhar em esclarecer logo à partida que não vem para contratar Jesus – mesmo que viesse. Do lado de Jesus, no entanto, o cenário seria perfeito: era uma forma de dizer ao Benfica algo como “não querem?! Pois olhem que há por aí quem queira!” e de forçar o presidente Rui Costa a uma definição acerca não só de um eventual novo contrato como até do que acontecerá até ao final deste, caso os dois clássicos lhe corram mal.
Jesus vive um momento particularmente decisivo da temporada, com dois jogos contra o FC Porto numa semana, mas pode perfeitamente sentir que consegue concentrar-se no que é mais importante, que é a preparação da equipa, mesmo com esta novela à sua volta – porque nela ele nem sequer tem de ser protagonista. Nesse aspeto, pode perfeitamente achar que se limitará a colher os dividendos, seja no reforço da sua relação com o Benfica, que assim pode ver-se forçado a clarificar a sua posição, ou na volta ao Rio de Janeiro como o desejado. O que nos leva ao papel do Benfica. Por que razão não se ouviu ainda a Rui Costa a defesa do seu treinador e a confirmação de que o contrato é para levar até ao fim ou até para renovar? Não tem de o fazer? Claro que não. Se o treinador está sob contrato presume-se que é para lá ficar até esse contrato acabar. Não sou nada partidário de votos de confiança nem acho que eles tragam algo de positivo seja para quem for. Mas se Rui Costa achassava que esta novela está a prejudicar o Benfica e quisesse pôr-lhe um ponto final, era isso que faria: “Se querem, paguem, que nós não vamos demitir!” Isso, Rui Costa não fez. Depois dos clássicos – e dependendo dos resultados – veremos se o fará.