Aplica-se a dinamite
O Sporting mudou com Gyökeres e Hjulmand. O dinamarquês deu-lhe a capacidade de passe para explorar o interior dos blocos adversários, o sueco o poder para os dinamitar. Está uma equipa anti-tuga.
Sempre que é atribuído mais um Nobel da paz, há quem recorde que a principal invenção do sueco Alfred Nobel, a dinamite, serviu acima de tudo para a destruição. Tantos anos depois, o efeito que Gyökeres está a ter na equipa do Sporting é semelhante ao que teve a dinamite na arte da guerra: tal como a substância criada à base de nitroglicerina rebentava com tudo de uma forma indiscriminada, o nem sempre esclarecido poder físico do avançado sueco tem a capacidade de destruir os blocos adversários, mas precisa de orientação, sem a qual faz com que ele pareça um elefante à solta numa loja de porcelanas. Foi nele, na sua capacidade de choque, de meter rapidez e velocidade nos corredores mas também de ganhar posição frente a cada bola minimamente dividida no corpo-a-corpo, que os leões montaram a devastação que fizeram chegar ao último reduto do Moreirense, após um início de partida complicado, devido à argúcia tática dos cónegos (pode ver a explicação no FDV Flash, aqui). Este Sporting é, ao mesmo tempo, a equipa mais anti-tuga do nosso campeonato, porque gosta de encostar o cabedal, e a que mais pode sofrer com a principal caraterística dos adversários que, por cá, estará destinado a encontrar semana após semana: a inteligência na montagem dos planos estratégicos para o contrariar. Até um monstro como Gyökeres precisa de enquadramento – e foi esse enquadramento que lhe foi dado ontem pela união de Hjulmand e Morita, o japonês a explorar a largura e o dinamarquês a entender com bola onde está o espaço no interior. Hjulmand, que veio para substituir Ugarte – que já tinha vindo para substituir Palhinha – está a tornar-se decisivo na equipa de Amorim e não é pela capacidade defensiva: é por perceber sempre que botões tem de tocar para acionar esse dispositivo de destruição maciça que é o sueco. A equipa cresceu muito com os dois, tornou-se prometedora, mas é preciso que se diga que está ainda longe de garantir aos adeptos o Nobel da paz de espírito que nasce só com as vitórias. É que já lá vão nove jogos contra os outros dois grandes sem um sucesso do Sporting – o último foi a final da Taça da Liga, frente ao Benfica, em Janeiro de 2022, estava Roger Schmidt no PSV. E o empate em Braga, contra uma equipa que ainda no sábado, em Faro, voltou a evidenciar o mau momento, não foi propriamente prometedor nesse particular.
A revolução abortada. Sérgio Conceição fez, contra o Estrela da Amadora, uma revolução no onze do FC Porto que a lesão de Marcano impedirá que percebamos se foi estratégica para enfrentar aquele adversário em específico ou fruto de uma crença mais profunda na aplicação de um novo processo, destinado a aproveitar o poder desequilibrador de Gonçalo Borges e Galeno nas alas. Na Reboleira, os dragões surgiram com três defesas, Pepe, David Carmo e o espanhol, mas a infelicidade que tirou este do campo logo de início – e para o resto da época... – forçou-os a entrar num plano de contingência que foi tudo menos convincente e que, é certo, terminou com a conquista dos três pontos, mas com felicidade. E se o baixo rendimento naquele jogo até poderia vir a ser melhorado com trabalho ou com outras opções naquela noite desprezadas (ou poupadas, que já aí vem a Champions), é a falta de profundidade num plantel amputado de Marcano que me leva a acreditar que a experiência não será repetida tão cedo. É certo que ainda há Fábio Cardoso e que Zaidu parece bem mais capacitado para aquela missão híbrida entre lateral em posse e terceiro central em momento defensivo do que um Wendell que sofreu sempre bastante com o espaço atrás das suas costas, mas a ideia que ficou foi a de que toda a gente estava desconfortável com a experiência. Pepe dominou o espaço atrás mas sofria para subir pela linha, Wendell crescia com bola – e como disse Conceição ele já está habituado a jogar por dentro, ainda que sobretudo quando ataca – mas parecia sempre perdido sem ela, e David Carmo precisa de um contexto mais acolhedor para recuperar toda a confiança perdida depois de um ano no banco e na bancada. As revoluções não se fazem sem tropas e creio que, sem ter Marcano, Conceição ficou sem condições para prosseguir com esta.
Há um novo Rafa? Di María é que tem feito golos, mas Rafa tem sido a figura do arranque de época do Benfica – e talvez as coisas estejam relacionadas. O futebol de Rafa, que sempre me pareceu mais fogo-de-artifício do que verdadeiramente diferenciador, muita velocidade sem consequência, demasiado espalhafato na aceleração seguido de inevitáveis más decisões, a escolher a opção errada de passe ou a rematar quando devia passar, parece esta época mais maduro, mais consciente do que tem de fazer em cada momento. Já perdi a conta às vezes que ouvi dizer que “se ele fosse forte na decisão não estaria em Portugal há muito tempo”. E é quando me lembro disso que me toca a primeira campainha: Rafa está em fim de contrato. Mas quererá ele, aos 31 anos, que já os terá quando acabar esta época, fazer o contrato da sua vida? Talvez, mas não creio que a sua subida de rendimento se explique através do famoso teorema dos jogadores que nos últimos anos de contrato começam a jogar barbaridades, porque por um lado na idade dele já dificilmente pode chegar a um grande do estrangeiro e, por outro, se era para ir forrar os bolsos para o Médio Oriente não tinha de se esforçar tanto. E foi quando, depois da vitória em Vizela, as primeiras páginas dos jornais se encheram de fotos de Di María que me tocou a segunda campainha. Talvez Rafa não fosse assim tão mau decisor. Talvez fosse a equipa que não o compreendia.
Agora faz outra vez. Não é preciso Enrique Cerezo dizer que João Félix vai ser um dos melhores jogadores da Europa em dois anos para se perceber que o atacante português tem condições extraordinárias. Mas porquê daqui a dois anos e não já daqui a dois meses? E se assim é por que carga de água é que ele continua a ser emprestado e não fica com Simeone no Atlético? A declaração do presidente “colchonero” tresanda a oportunismo e podia destinar-se a fazer-nos acreditar que há ali qualquer coisa que só eles lá no clube é que são capazes de ver, uma espécie de masterplan inatingível pelos mortais, não tivesse Cerezo dito quase a mesma coisa há dois anos. Com a diferença de que na altura o prazo para a afirmação do talento português era mais curto: “Dentro de alguns meses será um dos melhores jogadores da Europa”, disse o mesmo Cerezo sobre o mesmo Félix à Cope, em Maio de 2021. Ora não passaram dois meses nem tão pouco dois anos: bastaram dois dias para Félix roubar o palco de um Barça-Betis. Fez ele mesmo o 1-0 e, com uma simulação genial, deixou Lewandowski na cara do guarda-redes para o segundo golo de uma vitória que fechou nos 5-0 com um golaço de Cancelo. Já todos vimos João Félix fazer coisas destas, mas aquilo que ele tem de perceber é que não basta fazer como Cerezo e vir lembrar-nos, muito de quando em vez, quando já ninguém se lembra da última vez que ele o disse, que pode ser um dos melhores da Europa. O desafio de Félix não é mostrar qualidade. É mostrar consistência. Ora faz lá outra vez, já na Champions.