Anatomia da crise portista
André Villas-Boas e Jorge Costa tiveram de enfrentar os adeptos em fúria com a derrota do FC Porto em Moreira de Cónegos. E agora? Invertem a marcha? Para responder há que ver como se chegou aqui.
Palavras: 1418. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
A eliminação do FC Porto da Taça de Portugal, ontem, por uma boa equipa do Moreirense, desencadeou uma crise de proporções difíceis de conter mas que é muito mais complexa do que uma simples crónica do jogo poderia fazer crer. As manifestações de desagrado de gente da claque, tanto logo na bancada, em Moreira de Cónegos, como depois, à chegada da equipa ao Dragão, fundam-se numa realidade desportiva adversa, mas vão muito para lá dela, a ponto de serem quase uma inevitabilidade em busca de pretexto para acontecer. E nenhuma análise à situação ficaria completa sem que nela se incluíssem todos os parâmetros, da derrota eleitoral de Pinto da Costa à recente expulsão de sócio de Fernando Madureira, com passagem pelas perdas de Pepe, Evanilson, Francisco Conceição e Taremi e pela mudança de treinador, com a troca de Sérgio Conceição pelo seu adjunto, Vítor Bruno. O futuro imediato não se anuncia sorridente, mas se é tão irrelevante como legítimo que se pergunte se o seria sem todas estas mudanças – e isso já não parecia possível... –, é bem mais importante questionar se poderá sê-lo fazendo uma inversão de marcha neste momento. E, francamente, também não creio que a saída passe por aí.
Era mais ou menos inevitável que o FC Porto entrasse num período de convulsão, quase de vazio, depois de uma liderança tão marcante como foi a de Pinto da Costa durante 42 anos. O tema já vinha sendo levantado em vários fóruns desde que a consciência da finitude do líder começou a impor-se às avaliações neutrais. Aliás, esse foi um assunto que os rivais tentaram trazer a palco muito antes de ele ter correspondência na realidade, mas que os apaniguados do ex-líder também escolheram ignorar por muito mais tempo do que deviam. Lembro-me do tempo de ascensão de Luís Filipe Vieira – estamos a falar de 2000, 2001, por aí... – e de nada ser mais importante para os arautos do então homem forte do Benfica do que referir-se à decadência provocada pela idade num Pinto da Costa a quem já se referiam como “velho”, apesar de ele só estar a entrar nos sessentas. O presidente do FC Porto ainda os comeu de cebolada no tema Mourinho, por exemplo, voltou a ser campeão europeu, a mostrar que não, não estava velho – e não deixa de ser irónico que Vieira seja hoje um dos poucos a quem Pinto da Costa ainda abre as portas do convívio. Mas, mais de 20 anos depois, a atuação do ex-líder portista como máximo responsável do clube e de uma SAD onde deixou que quem via de fora achasse que já não era ele a tomar todas as decisões, conduziu o FC Porto para esta situação de degradação que poderia adivinhar-se à distância e que só a gestão de crise feita por Sérgio Conceição foi sendo capaz de atrasar.
É curioso que se olhe para o plantel que está hoje à disposição de Vítor Bruno e se ache que ele, afinal, não é assim tão inferior aos grupos que Conceição levou a títulos, porque Samu é bem capaz de substituir Evanilson, Fábio Vieira – ainda que emprestado – não ficará a dever a Taremi, perdeu Pepe mas têm um central de seleção argentina e outro que há uma semana se estreou na portuguesa e ainda acrescenta um lateral esquerdo que não havia, em Francisco Moura. Sucede que a degradação do plantel não começou neste Verão. O FC Porto já acabou a época passada a 18 pontos do Sporting, em resultado de uma gestão que, propositada ou involuntariamente, conduziu a saídas a custo zero e à necessidade de contratar substitutos que ficavam aquém e invertiam aquilo que tem de ser o modelo de negócio de clubes da Liga Portuguesa. Os clubes em Portugal precisam de vender acima do valor a que compram e o FC Porto andava a comprar caro e a perder gente de borla – Taremi foi o último deste lote, que antes dele incluiu Uribe, Mbemba, Nakajima, Marega, Aboubakar, Herrera ou Marcano. Aqui se percebem os milhões que o clube deixou de receber, mas também os que teve de gastar na substituição destes ativos. E é curioso ver como, na mais recente Assembleia Geral, sócios ligados à gestão anterior alegaram que a transparência tão publicitada por Villas-Boas afinal não estaria a ser cumprida, mas continuaram a negar o mal que fez ao clube a opacidade em que ele viveu nos últimos anos.
Porque as coisas aqui têm de ser separadas. Os erros do regime anterior não justificam os que estão a ser cometidos pelo atual, mas também não podem ser esquecidos quando se avalia o ponto de que este partiu. Isso para a multidão em fúria que ontem esperou pela equipa junto ao Dragão é irrelevante. Ali há inegavelmente a mágoa de um resultado negativo, ainda por cima vindo na sequência de um outro, que foi o 4-1 contra o Benfica, na Luz, há igualmente sentimento de pertença, ao FC Porto, sim, mas também a uma claque que servia como uma espécie de braço militar da gestão anterior e que a nova amputou da sua liderança e dos seus privilégios. O problema dos contestatários, que no jogo mostraram tarjas de apoio a Fernando Madureira e no auge da contestação cantaram por Pinto da Costa, é com a eliminação da Taça, com os seis pontos de desvantagem para o Sporting na Liga, mas é sobretudo com o virar de página do clube. Muitos deles, a maioria, talvez, acredita muito no que está a fazer, apesar de ser uma espécie de carne para canhão, mandada para a frente por quem vê mais longe do que eles. E ter a noção disto não implica que se ache que a nova gestão está a fazer tudo bem, que o novo treinador só tomou boas decisões. Mas ao mesmo tempo ajuda a perceber e a aceitar que este seja um caminho sem retorno, quanto mais não seja porque Pinto da Costa não volta a ter 60 anos e o de 80 já estava a contribuir mais para a degradação do edifício que é o FC Porto do que para o seu engrandecimento. Nem que fosse por ausência…
Neste momento, tal como sucedeu no Sporting a Frederico Varandas no auge da contestação de que foi alvo por parte das claques, André Villas-Boas não pode olhar para trás, mesmo que de caminho tenha de teimar em soluções que estão longe de ser as ideais. E, ainda que me pareça que Sérgio Conceição foi durante anos o maior – o único? – responsável pelo disfarçar da gradual mas firme degradação do plantel, conquistando títulos, é certo, mas sempre com um futebol e uma atitude confrontacional recusados pela nova administração em nome da sanidade do negócio, demitir Vítor Bruno, como pedem muitos adeptos, seria olhar para trás. Por mais que quem continua a viver nos anos 80 e na dinâmica do inimigo externo ache que o futuro pode fazer-se dessa dialética, ela não cabe no futebol-indústria. Independentemente disso, porque estas são discussões separadas, é certo que o treinador do FC Porto não está a ser capaz de fazer aquilo que fazia Conceição: ganhou um troféu à base do arreganho, do “ser Porto” e de alguma fortuna, quando a equipa ainda era bastante inferior à do adversário, mas não foi depois capaz de montar nada em cima do natural crescimento que esta conheceu com o fecho do mercado e a incorporação dos reforços de última hora, que a deixaram ainda aquém mas mais próxima do que valem Sporting e Benfica.
O FC Porto não só não joga mais hoje do que jogava em meados de Setembro, quando o poder físico de Samu lhe permitiu dinamitar o Vitória SC em Guimarães, como até joga menos, aparentemente perdido nas suas contradições e em alterações estratégicas que têm impedido a equipa de crescer em torno de alguns dos que podiam ser os seus pilares de sustentabilidade (Pepê, Nico González e Fábio Vieira, por exemplo). Essa é uma questão da qual Vítor Bruno naturalmente terá consciência. E pena é que em vez de o ouvir explicar isso, ele se sinta compelido a assumir a culpa e a responsabilidade por uma situação da qual, sendo culpado e responsável, talvez seja o menos culpado e o menos responsável.
Vai o FCPorto aguentar esta viragem de ciclo? O norte irá permitir um domínio do sul recuperado há a mais de 35 anos? Existirá capacidade dos clubes do sul reforçar e alternar o domínio do poder?
Há muito aqui de falta de hábito. O Benfica e o Sporting já estiveram nesta posição, o Porto é a primeira vez desde talvez a década de 60 e, felizmente para mim, infelizmente para eles, está a correr mal neste momento. Veremos se os portistas têm a paciência que os rivais tiveram, para já não.