Amor, convicção e estratégia
A auditoria revelada pelo FC Porto, a mostrar abusos da gestão anterior, pode nem pôr em causa o amor de Pinto da Costa pelo clube, mas evidencia a inadequação da estratégia e a falência da convicção.

Palavras: 1347. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Até pelo facto de ter conhecido alguns desaires ao longo da vida, o mais clamoroso dos quais, no estreito dos Dardanelos, na I Guerra Mundial, bem podia ter-lhe custado a carreira política, Winston Churchill sabia do que falava quando nos introduziu a todos ao conceito de que “a história é escrita pelos vencedores”. Sem a vitória de André Villas-Boas nas eleições do FC Porto não teria havido auditoria forense e sem auditoria forense não teríamos a certeza – que suspeitas já abundavam... – do regabofe em que se tornara o FC Porto nos últimos anos de Pinto da Costa. Mas não deixa de ser também provável que sem as derrotas portistas em Leiria e no Funchal, a impedir a equipa de obter um único dos dois títulos de “campeão de inverno” que estavam à disposição na semana passada no futebol português, também não tivéssemos a divulgação, assim, de supetão, de conclusões que nos levam a todos a deixar cair o queixo de espanto. Como a atualidade nos ensina todos os dias, há a realidade e a perceção que o espaço público nos leva a ter dela. E só nesta última é possível interferir a posteriori. A análise ao momento portista tem de distinguir bem as duas, mas nem essa distinção deve justificar que se ilibem as más condutas.
Todos, do cidadão mais anónimo ao mais ilustre, temos dentro de nós várias camadas. E se elas são detetáveis num corte transversal, mais ainda se notarão se adotarmos uma perspetiva longitudinal. Ando a ler uma obra notável, de Brandon K. Gauthier, chamada “Before Evil”, que nos descreve as vidas de Lenin, Hitler, Estaline, Mussolini, Mao e Kim antes de se tornarem os ditadores sanguinários que hoje recordamos e, por mais que os gurus da psicanálise possam encontrar nessas vivências as razões mais profundas para que o mal ali tenha florescido, todos eles eram pessoas como nós, com bons e maus momentos, boas e más decisões. O mesmo se aplicará, por isso, a Pinto da Costa, que é a figura maior de mais de cem anos de portismo. A comparação que faço não é, como entenderão os que não forem mal-intencionados, acerca do nível de malignidade, mas a propósito das flutuações por onde a vida nos carrega. Como é que se explica que alguém que elevou um clube a um patamar jamais visto, como fez Pinto da Costa com o FC Porto, possa depois também ter sido a figura que permitiu abusos como os revelados pela auditoria? E é aí que entra o erro, se a pergunta nos conduz a outras. Deixou de gostar do FC Porto? Ou será que na verdade ele sempre gostou mais do palco e das regalias que o clube lhe proporcionava?
Pode até ter havido mais do que uma simples convicção na tomada de poder no FC Porto por parte de Pinto da Costa, entre os anos 70 e os 80 do século passado. Ninguém é invulnerável à vaidade de se ver associado a um bom momento. Ninguém tem a intervenção que Pinto da Costa teve por puro altruísmo. Mas o erro, aqui, é anularmos a parte da convicção e do amor ao clube. O Pinto da Costa dos primeiros tempos tinha uma convicção – a de que era preciso abalar o poder de Lisboa num país demasiado centrado na capital. Tinha uma estratégia, que terá ido da contratação de competências (treinadores, jogadores...) ao aproveitamento sagaz e nem sempre impoluto dos meandros do jogo, graças à capacidade para ver antes dos rivais a que empresários devia associar-se e de quais devia afastar-se, à criação de uma “polícia de estado” capaz de intimidar outros agentes ou aos casos que o Apito Dourado veio a revelar. Isto, porém, foi há 30, 40 anos... Nas décadas que passaram desde então, Pinto da Costa não terá deixado de amar o FC Porto. Mas o que, aquando das últimas eleições, em Abril, muitos continuavam a não ver era que essa era já a única parte da equação que permanecia imutável. Como a realidade mudou, a convicção deixou de fazer sentido – hoje, quando muito, justificar-se-á em Chaves, Castelo Branco ou Beja, mas nunca no Porto, por mais que esse fantasma continue a ser agitado por populistas em nome da bandeira de um “Norte” que não existe a não ser na cabeça deles. E a estratégia também foi sofrendo os seus revezes, fruto de erros de apreciação que acontecem aos melhores e naturalmente se multiplicam quando a pessoa envelhece e deixa de estar na posse das faculdades que tinha na juventude.
Pinto da Costa fez 87 anos no final de 2024 e não pode ter hoje a clarividência que tinha aos 44, quando se tornou presidente do clube e, com José Maria Pedroto, pôs o plano em prática. A desorientação do final da década de 90, que depois de impedir o FC Porto de conquistar o sexto campeonato consecutivo, levou a inéditas três temporadas sem títulos antes da salvação protagonizada por Mourinho, já dera os seus sinais. O esbanjamento sem limites nascido da soberba que se seguiu ao título europeu de 2004 ainda foi corrigido a tempo de montar, em meados da década passada, a maior equipa do FC Porto num mercado global, a que teve Hulk, Falcao, James, Lucho e Otamendi. Depois, porém, os erros sucederam-se. O recrutamento foi piorando, fruto também da decadência nas associações, quando o clube passou de D’Onofrio, Veiga ou Mendes no auge aos Pinhos desta vida. A tal polícia de estado, que fez entrar o nome do Guarda Abel para o folclore do futebol nacional do final do século passado, foi substituída pelos Super Dragões, entidade que continuava a responder ao dono mas que se tornava muito mais difícil de controlar à conta da ambição dos seus cabecilhas e das suas múltiplas áreas de intervenção. Prisioneiro desta realidade, o FC Porto começou a recrutar pior, a perder gente pela mera necessidade de satisfazer os desejos de quem ganhava com a substituição dos que iam embora. Assim se explica a balbúrdia das comissões, mas também a entrada no clube de muitos jogadores que nunca vieram a ser úteis e dos quais se desconhece sequer a existência de relatórios de observação – o que, por mais que as viagens do clã Madureira às Maldivas ou à Tanzânia possam satisfazer o anseio do debate público pelo insólito, monopolizando os títulos, representa o problema mais grave desta auditoria.
O presidente estava tão mal que não se apercebia disto? Dos abusos levados a cabo por quem o rodeava? É impossível dizê-lo com certeza absoluta. Nos últimos anos de mandato, Pinto da Costa pode ter sido prejudicado pela decadência normal para a sua idade ou pela vaidade de querer continuar a ouvir que só ele permitiria a salvação do FC Porto, vindo da boca de quem o rodeava e, para manter os privilégios, continuava a agitar bem alto a tal bandeira estratégica de há 40 anos, a do Porto contra o Mundo, que até limitava o crescimento do clube para além das suas fronteiras – o que é altamente contraproducente no futebol-indústria do século XXI. E isto só era possível a partir da ideia – possivelmente correta – de que sem a revolução que ele tinha operado nos anos 70 e 80 o clube nunca teria passado do papel de rival longínquo de Benfica e Sporting no panorama do futebol nacional, o que permitia espalhar a narrativa de que sem ele tudo voltaria ao mesmo. Sim, como dizia Churchill, “a história é escrita pelos vencedores” e, tivessem os vencedores sido outros provavelmente teríamos outra realidade, mas a citação que mais se adequa a esta realidade do FC Porto vem de uma carta de Lord Acton ao Bispo Mandell Creighton no final do século XIX: “O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”.
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Pinto da Costa ou quis garantir a reforma, ou ficou cego de poder e achou que o clube era dele (o que pareceu resultar da saída dele do clube pela garagem e pelas entrevistas que deu quando saiu), ou perdeu capacidades pela idade e deixou-se enganar por todos os que estavam à sua volta.
Excelente análise. A coragem de AVB em realizar a auditoria, deveria servir de exemplo a outros clubes/Sad tanto cá como por essa Europa fora, muito provavelmente iria colocar a nu muitas situações, encobertas muitas vezes apenas pelos resultados desportivos.