A bela e o monstro
Há um ogre a ameaçar-nos. É feito da amálgama entre o Paris Saint Germain, a BeIn Sports, o emirado do Qatar, o estado e a Liga Francesa, a UEFA, a FIFA e a Associação Europeia de Clubes.

Palavras: 1302. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Não quero ver em John Textor o futuro do futebol. E nem é por o achar demasiado folclórico e às vezes até ingenuamente irresponsável, por exemplo na forma como descobre sempre fora dos seus clubes as razões para falhanços que são internos. É, sobretudo, porque também ele aponta já a negócios em escala entre os seus emblemas, criando hierarquias dentro de um mesmo grupo que diminuem a paixão dos adeptos e a subjugam a um interesse que só é maior para ele, que está na posição do condutor. Mas é difícil não simpatizar com a guerra travada pelo dono do Olympique Lyon, tantas são as frentes em que tem de se envolver. Ainda que, no fim de contas, em todas elas tenha do outro lado um mesmo general. O emir do Qatar tem aparentemente na mão aquilo que interessa: o Paris Saint-Germain e a BeIn Sports, de que é dono, a Liga Francesa, que o seu canal de TV salvou de uma drástica redução de receita audiovisual, porventura até o Eliseu, que foi providencial, por exemplo, na atribuição do Mundial de 2022 ao regime de Doha, na ordem dada por Sarkozy a Platini, e a UEFA, à conta da influência que conseguiu granjear na ECA, a Associação de Clubes Europeus, presidida por – quem mais... – Nasser Al-Khelaifi, o mestre marionetista de todos estes palcos. O problema desta versão da Bela e do Monstro é que a bela e o monstro, afinal, são a mesma entidade.
Se em Espanha Joan Laporta continua a sua deriva populista contra as regras da Liga e agora até já tenta levar para o seu campo Florentino Pérez e o madridismo, agradecendo-lhes por não terem apoiado a Liga e a Federação na tentativa de travar a fúria gastadora dos catalães no caso das inscrições de Dani Olmo e Pau Victor, finalmente aprovadas por uma cautelar no recurso ao Conselho Superior do Desporto, há uma coisa que parece evidente. É que aqui ao lado o que estava em causa era simplesmente uma tentativa de fazer a lei funcionar de forma igual para todos, sem concessões ao Barça em nome do seu imenso manancial de seguidores e adeptos. Em França, como acabamos de ver no cerco e posterior resgate de Kvaratskhelia por parte do Paris Saint-Germain, em comparação com as medidas restritivas impostas ao Olympique Lyon de Textor, já não é assim. No hexágono, há um clube que tudo pode, até meter 75 milhões de euros na contratação de Kvaratskhelia, o craque georgiano do SSC Nápoles, ano e meio depois de ter torrado 95 milhões em Kolo Muani, que agora se prepara para despachar, emprestado, para a Juventus, porque não joga há um mês e já se viu que não funciona. “Qual é o problema? É o mercado a funcionar!”, dir-me-ão. Pois bem, aqui há vários problemas – e o menos premente até é o facto de ‘Kvaradona’, como é conhecido em Nápoles, ter contrato até 2027 e ter na mesma sabido que em Paris lhe ofereciam 11 milhões de euros por ano, seis vezes mais do que o que ele recebia em Itália, a ponto de se ter mostrado indisponível para jogar e de o seu treinador, Antonio Conte, se ter dito “desilududo” com ele. Sim, as regras da FIFA proíbem a abordagem a jogadores que estão sob contrato a não ser nos últimos seis meses da sua vigência mas, quanto a isso, batatas, que não há quem cumpra. Há sempre um primo, um cunhado, um amigo que pode levar a mensagem sem uma reunião com o jogador ou o seu agente. Só que o tema não acaba aí.
O tema é muito mais vasto e vai desembocar no domínio opressivo do capital qatari sobre a Liga francesa – e é isso que, quase sempre de forma meio embrutecida, Textor tem tentado denunciar. “É pena que a classe não esteja à venda, porque ela permitiria que o senhor Textor evitasse ter-se ridicularizado nos ataques ao nosso presidente”, disse um porta-voz do PSG na sequência de uma entrevista do dono do Lyon à RMC, na semana passada, em que o investidor norte-americano afirmou, com todas as letras, que Pascal Labrune, o presidente da Liga, está totalmente manietado por Al-Khelaifi. Ao mesmo tempo, saltaram para as redes sociais cópias de mensagens antigas, endereçadas por Textor ao presidente do PSG, nas quais insultava alguns jogadores. Mas esses SMS nunca serão mais do que o chantili em cima dos morangos, a tentativa de, com ‘fait-divers’, por mais graves e reveladores de má índole que eles acabem por ser, disfarçar uma realidade incomensuravelmente mais preocupante, que é a da forma como o dinheiro do Qatar escapa sempre a todo e qualquer escrutínio de ‘fair-play’ financeiro que depois vem impor limites – justos, de resto – aos competidores. A ponto de o Olympique Lyon estar neste momento a contas com uma ameaça de despromoção à II Liga no final da época, se até lá não conseguir que a Direção Nacional do Controlo da Gestão e a Liga aceitem as injeções de capital que Textor quer fazer no clube como válidas. E a forma como a bela, que é a equipa de futebol repleta de craques montada pelo PSG, de repente se mostra dependente do monstro, que é o ogre político-financeiro montado pelos qataris, não vem ameaçar só a competição em França – estende a sua influência nefasta a toda a Europa, como se vê agora no caso Kvaratskhelia. Porque Textor não é flor que se cheire – e o modo como está a tentar fintar a proibição do Olympique Lyon contratar jogadores em Janeiro inscrevendo Thiago Almada e eventualmente Luiz Henrique na sequência de empréstimos gratuitos do Botafogo mostra-o bem –, mas a alternativa é pior.
O Paris Saint-Germain gastou 170 milhões de euros no mercado do último Verão, o que veio a refletir-se num investimento global de 100 milhões, face aos 70 milhões que fez em vendas. No ano anterior tinha gasto 455 milhões – e nem as vendas inflacionadas de Neymar, Verratti, Diallo, Draxler e Wijnaldum para o Qatar e para a Arábia Saudita, por um total combinado de 167 milhões, impediram o clube de fechar a temporada com uma balança de transferências da ordem dos 250 milhões de euros negativos. Entre 2019 e 2023, o PSG já tinha apresentado perdas globais acima dos 600 milhões de euros, mas nem assim foi travado pela UEFA ou pela Liga Francesa, graças às injeções de capital feitas no clube pelos seus donos. E é na procura das razões para esta duplicidade de comportamentos vigilantes, primeiro nacional e depois europeia, que está o falseamento da livre concorrência e da verdade desportiva. Porque o clube a quem tudo vem sendo permitido pertence aos donos da estação de televisão que foi a correr salvar a Liga Francesa de uma quebra de receitas sem precedentes. Ao estado que levou o ex-presidente Nicolas Sarkozy a ‘ordenar’ a Platini que mudasse o voto da Federação Francesa e das que conseguisse influenciar na atribuição do Mundial de 2022, a troco de uma intervenção musculada na economia gaulesa. E é liderado pelo mesmo homem que preside à ECA, a Associação Europeia de Clubes, que anda de braço dado com Aleksandr Çeferin e a UEFA na luta contra as tentativas de secessão lideradas pelos entusiastas da troca da Liga dos Campeões por uma SuperLiga rebelde. É uma luta justa? É. Mas nem isso deve permitir que os que a travam tenham benesses escondidas aos outros. E neste momento ninguém pode vir negar que a realidade seja, pelo menos, suspeita.
Dúvidas sobre o Substack:
Saíste das redes sociais?
Não. Continuo a ter conta no Facebook, no Instagram e no Twitter. O que deixei foi de publicar posts com os textos que saem no Substack e de responder a comentários que façam por lá. Deixei de fazer posts com os textos porque, em qualquer dessas redes, eles traziam cada vez menos gente para a leitura. E o meu objetivo aqui é, primeiro, levar-vos a ler o que escrevo e, depois, eventualmente, discutir os temas com quem leu. Ora o que acontecia nas redes sociais é que os algoritmos começavam por esconder os posts, que tinham um alcance cada vez menor. Além disso, era cada vez mais flagrante que quem por lá comentava não tinha lido sequer o parágrafo de lançamento até ao fim, quanto mais o texto. Está tudo bem. Promover o debate ali é o negócio dos donos das redes sociais e quanto mais irracional for esse debate melhor para eles, porque leva a mais réplicas e contra-réplicas. Eu é que não tenho de contribuir para isso, até porque discutir um texto com quem não o leu é das coisas mais exasperantes e esgotantes que pode haver - e essa é a razão pela qual deixei de responder a comentários lá. Achei que a melhor maneira de promover a leitura e de discutir os temas com seriedade passava por limitar a partilha dos posts ao Substack e ao Notes, onde continuo a responder-vos, e a estar à vossa disposição no Discord. No Facebook, no Instagram e no Twitter estou como observador, mas na verdade gasto lá cada vez menos tempo que depois me faz falta para ler e escrever mais.
A conselho de um amigo, o Último Passe passou, desde a semana passada, a conter a resposta a uma dúvida que possa surgir-vos acerca da minha atividade. No final, todas estas perguntas e respostas serão compiladas num FAQ que vai ficar disponível no meu Substack.
Pensava que não era permitido transferências e empréstimos entre equipas do mesmo dono. Não sei como o PSG continua a ter roda livre, aliás pelo texto do AT até percebo.
O futebol não pode andar com estas regras sem aplicação pela chico espertice de existir "um primo, um cunhado, um amigo". Era hora de se inspirarem nas leis RICO dos EUA e punir o clube pela ação de todos os que agem em seu nome e interesse, seja "um primo, um cunhado, um amigo", seja um empresário, seja o próprio clube. Assim não é regra que lhe valha.