Acabar com o desconforto
O “Estou Além”, de António Variações, carateriza bem o desconforto que alguns jogadores sentem nas missões que Martínez lhes tem pedido. Para ganhar à França, há que acabar com o desconforto.
Há boas ideias que com o tempo se tornam más. Há inovações que primeiro resolvem e logo a seguir atrapalham. Parece ser esse o caso da adoção pela seleção nacional do lateral interior, o fenómeno tático da moda neste Europeu. Primeiro, na qualificação, até foi uma boa ideia, porque adotado a partir da esquerda, permitiu o crescimento de Rafael Leão na largura, junto à linha – e o atacante do Milan nunca tinha sido bem aproveitado por Fernando Santos, que usava os extremos mais dentro. Mas a mudança do contexto, o regresso de Pepe, a necessidade de aproveitar Vitinha e a ilusão à volta das capacidades de João Cancelo para ser aquilo que não é levaram a que na fase final se tenham visto vários jogadores a entrar em campo como se recitassem António Variações. “Vou continuar a procurar o meu Mundo, o meu lugar, porque até aqui eu só estou bem onde não estou”, cantava o barbeiro que fez furor na década de 80. Hoje (20h, TVI e Sport TV 1), jogam-se os quartos-de-final, contra uma seleção de França que não tem sido espampanante mas é cínica no aproveitamento das mais pequenas situações e muito sólida a defender o espaço à frente de Maignan. Para lhe ganhar, é preciso acabar com o desconforto que tem penalizado alguns jogadores na equipa de Portugal.
Roberto Martínez começou a qualificação em 3x4x3, mas desde o Verão passado passou para o 4x3x3. Na fase final já usou os dois sistemas. De qualquer modo, deixei claro aqui e aqui que, qualquer que seja o sistema utilizado, a seleção ataca sempre com a mesma organização estrutural, em 3x2x5. Já durante a qualificação, num Futebol de Verdade Report sobre a seleção, vos mostrei, num vídeo de 30 minutos (que podem ver aqui), como funcionavam os desdobramentos da equipa – e na altura, confesso, esta multi-estrutura parecia-me uma boa ideia. Porquê? Sobretudo porque resolvia o problema-Leão. É indiscutível que quase todos os jogadores precisam de um contexto que lhes permita render mais – Leão precisa de largura, para arrancar em velocidade com espaço, a partir da linha, Bernardo Silva rende mais se estiver mais interior, porque isso lhe permite ligar melhor o jogo, Vitinha é mais útil em início de construção, se pegar no jogo mais cedo, e não a entrar no quinteto da frente, onde Martínez chegou a colocá-lo na preparação, Félix tem de jogar a segundo avançado, atrás de um ponta-de-lança, preferencialmente por dentro, Bruno Fernandes é um jogador se entrar na linha da frente e outro se entrar na dupla de meio-campo, porque em cada uma das missões se lhe pede uma coisa diversa... A tarefa de um selecionador é pegar nesta multiplicidade de caraterísticas e construir um plano de jogo que tire o melhor de cada um. E sacrificar aqueles que não consegue encaixar, em nome de uma coisa mais importante, que é o coletivo.
Não se trata de ceder a caprichos de jogadores, que querem jogar mais dentro ou mais fora, mais avançados ou mais recuados. Trata-se de perceber em que é que eles podem ajudar mais a equipa – porque, por mais que o queira e que seja voluntarioso, um jogador não vai nunca ser aquilo que não é, da mesma forma que um Fórmula 1 nunca ganhará uma corrida de todo-o-terreno. Há anos, desde que ele foi eleito o melhor jogador da Série A, na época do scudetto do Milan (2021/22), que venho dizendo que um bom Portugal tem de tirar o melhor de Leão. Martínez resolveu esse ovo de Colombo, ao dar-lhe largura no 3x2x5 ofensivo, rearrumando as peças de maneira a que tudo fizesse algum sentido. No 3x2x5 atacante, na qualificação, Portugal saía com os dois defesas-centrais e com o recuo do médio-defensivo para o espaço entre eles, o que só poderia trazer problemas por falta de um pé esquerdo (se não jogasse Inácio) e se os adversários nos pressionassem a saída curta. Na qualificação, raramente se colocaram as duas situações – só aconteceu em Bratislava com a Eslováquia, único desafio em que a seleção passou por momentos de algum sofrimento. Depois, a dupla que oferecia linhas de passe mais seguras a este trio era formada por outro dos médios e pelo lateral esquerdo, que em posse se convertia em médio-centro. Cancelo fez isto, como o fez Diogo Dalot. E porquê? Porque sem lá estar o lateral, isso permitia que, no quinteto que se colocava na frente, Leão fosse o jogador mais aberto na esquerda. Entre ele e o ponta-de-lança entrava o terceiro médio, ao passo que na direita quem dava largura era o lateral, mais projetado, com o avançado direito – geralmente Bernardo Silva – a jogar mais por dentro, algo que também lhe convém, para participar mais no jogo. E é aqui que se pergunta: então, mas se fazia sentido, porque é que Martínez mudou?
A resposta é simples e tem que ver com Pepe. A segurança dada pelo veterano defesa-central levou o selecionador a querer incluí-lo no seu onze preferencial, à esquerda de Rúben Dias. E, mais no jogo com a Turquia do que no desafio com a Eslovénia, defensivamente, Pepe até deu razão ao selecionador. O problema é que com Rúben Dias, Palhinha e Pepe não dá para montar uma linha de três competente a sair sob pressão. Faltavam ali agilidade em início de construção e um pé esquerdo. Martínez começou a tentar resolver o problema no particular com a Suécia, em Março, altura em que aproveitou uma rara disponibilidade de Nuno Mendes para meter o lateral esquerdo na linha de três atrás – o que até dava mais conforto a Pepe, que passava a ser o homem do meio em início de construção. O que isto implicava era que Palhinha teria de se arrumar mais à frente, na dupla de médios que tem muitas vezes de atacar as entrelinhas e jogar dentro do bloco adversário. Não é o ideal, mas se o outro médio for Vitinha nem é de todo descabido, desde que haja uma hierarquização mais clara do que faz um e do que faz o outro e não se adote o “agora vou eu e a seguir vais tu”. O terceiro médio continuava a ter de entrar na meia-esquerda, para dar mais conforto a Leão, o que não sendo o ideal, não deixa de servir Bruno Fernandes, que dali pode visar melhor a baliza de pé direito, pelo que faltava resolver a questão da direita. E é nesta que a equipa mais vezes tem encalhado, porque Martínez parece convencido de que Cancelo rende mais por dentro, como segundo avançado, a surgir na área quando o ponta-de-lança se ausenta, do que fora, sempre projetado e a dar largura. E isso força Bernardo Silva a jogar nessa posição mais aberta, junto à linha, onde ele perde influência, porque toca menos vezes na bola e deixa de ser a arma de ligação interior que se sabe que pode ser.
A questão parece tão simples de resolver – é só devolver os dois às funções que lhes são mais naturais e que em alguns momentos chegaram já a desempenhar, que nada disto tem sido estanque – que, se Martínez não a resolveu ainda, não é por não saber como. É por convicção, por acreditar que Cancelo pode ser um “10” melhor do que Bernardo e que este pode ser um extremo melhor do que Cancelo. Com o devido respeito, discordo. E acho que esse tem sido o maior problema da seleção nesta fase final, porque lhe tem faltado capacidade para afundar na direita e jogo interior, dentro dos blocos adversários. Isto notou-se menos contra a Turquia, seleção cujas deficiências no processo defensivo são notórias e que ainda por cima não jogou com linhas assim tão próximas, mas pode vir a ser fundamental no ou nos jogos que ainda há a disputar. Porque seleções como a França, a Espanha ou a Alemanha terão mais iniciativa, mas também têm comportamentos defensivos, individuais e coletivos, mais aperfeiçoados. Até aqui, Portugal é a equipa com mais bola (65%) da competição, a segunda que mais rematou (74 tentativas, só atrás das 84 da Espanha), mas tem andado sempre arredia do brilho atacante. E para pôr um ponto final nessa opacidade é preciso, primeiro que tudo, acabar com o desconforto – além de que teria sido recomendável impedir Ronaldo de fazer quase todos os minutos até aqui, para o ter mais fresco agora, que é quando mais conta.
A isso, porém, já não há volta a dar. Quanto ao resto, a não ser que as dificuldades físicas que Pepe mostrou contra a Eslovénia – no contacto e na capacidade para impedir os avançados de se virarem para atacarem a nossa profundidade – impeçam que ele esteja nos titulares mais logo, não será preciso mexer no onze nem no sistema. É só dar algum conforto aos jogadores, deixá-los exprimir futebol naquilo em que são verdadeiramente mais fortes. Sem inventar.
Não vi nem vou ver.
Tenho uma questão para colocar ao AT, relativamente ao Clube privado.
Entre outros assuntos questionáveis, acha que neste europeu a gerência de alguns jogadores deste clube privado poderá ser posta em causa?