A visão não eurocêntrica do Mundial
Os europeus estão pior no Mundial porque estão cansados? Talvez. Mas não creio que seja essa a razão fundamental. Esta passa por motivação para a prova e planificação de 2025/26. E veremos se perdura.

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A primeira semana de Mundial de clubes contrariou a ideia do primeiro dia, que eu aqui tinha expresso com reservas, e tem servido para alimentar acalorados debates entre os europeus e os sul-americanos acerca do poder de cada continente no ecossistema global do futebol. É neste momento altamente provável que as quatro equipas brasileiras presentes na prova avancem para os oitavos-de-final, ao mesmo tempo que as duas argentinas entram na última jornada com perspetivas pelo menos interessantes de as acompanharem. Em contrapartida, nos oito clubes europeus, haverá seguramente baixas inesperadas, com o Atlético Madrid e o FC Porto a lutarem hoje para não encabeçarem esta lista. Mas é interessante que a perspetiva eurocêntrica nos tenha levado a, pela primeira vez, introduzir o fator “altura-do-ano-em-que-se-joga” na avaliação do poder de cada uma destas fações. E que, mesmo assim, ainda haja europeus com aspirações a levantar a taça no final da prova. A mim, de resto, isso ainda me parece o mais provável.
Há uma semana, depois de ver como o Palmeiras foi incapaz de vencer o FC Porto diminuto que temos por estes tempos, chamei a atenção para o facto de as primeiras 65 equipas no ranking mundial da Opta serem europeias. E acrescentei que era claro que não podíamos tirar conclusões “de um jogo – nem sequer de uma edição do Mundial” – mas que o que isso nos dizia era que o fulcro do poder desportivo no futebol estava atualmente na Europa. Depois, contudo, ainda na primeira jornada, o Benfica não foi capaz de ganhar ao Boca Juniors (2-2), o Borussia Dortmund ficou nos 0-0 contra o Fluminense, o Inter Milão também não foi além do empate (1-1) com o Monterrey CF e o Real Madrid dividiu pontos com o Al Hilal (1-1). E a segunda ronda foi afirmativa para os sul-americanos, sobretudo graças às vitórias do Botafogo sobre o Paris Saint-Germain (1-0) e do Flamengo face ao Chelsea (3-1). Do hemisfério sul, logo vieram gabarolices que pareciam indicar que se voltara aos tempos do Santos FC de Pelé. As redes sociais encheram-se de debates acerca das hipóteses de equipas portuguesas vencerem o Brasileirão, se o disputassem, ou das brasileiras ganharem a Champions, se a jogassem. Da Europa respondia-se que o que se passa é que as melhores equipas europeias vêm fatigadas e as sul-americanas chegam na pujança do meio da sua época desportiva. Mas esse, na minha perspetiva, não é o ponto.
Nunca se ouviu falar de tal coisa enquanto se viu o domínio europeu na Taça Intercontinental ou no formato anterior do Mundial de clubes, provas que se disputavam em Dezembro, meio da época no futebol europeu e final para os sul-americanos. Nas últimas 20 edições dessa competição, houve só três vitórias sul-americanas: do São Paulo FC em 2005, do Internacional em 2006 e do Corinthians em 2012. Os argentinos já não a ganham desde o Boca Juniors de 2003. Ora nos últimos 13 anos de superioridade total dos europeus nunca se ouviu ou leu que ela se devesse à fadiga de equipas sul-americanas que entravam completamente rebentadas na final. Por uma razão: é que a competição, para elas, importava na mesma, a ponto de todas centrarem esforços na sua conquista. E a dúvida que se coloca na ótica europeia, hoje, é até que ponto é que este Mundial importa. Importa o suficiente para que se tivessem preservado para o jogar? Ou para porem em causa a planificação da época que aí vem? O que nos transporta para o patamar seguinte, o de responder a outra dúvida: quando começa verdadeiramente a época que aí vem? E qual será a melhor forma de a abordar, neste terreno inexplorado que é jogar sem férias três anos seguidos (que no anterior houve Europeu, Copa América e Jogos Olímpicos e no próximo teremos Mundial de seleções)?
As respostas a estas questões não são unas em todo o continente europeu. Por exemplo, para o Manchester City ou o Real Madrid, o Mundial importa muito, porque passaram a temporada de 2024/25 a acumular frustrações. Guardiola já falou do que gostou nas equipas da América do Sul e não duvido por um segundo de que o foco dele estará, sobretudo, em ganhar este Mundial, de maneira a não fechar a temporada de mãos a abanar e entrar na próxima com um sabor bom na boca. O mesmo pode dizer-se do Real Madrid, que viu fugir tudo na época que agora acaba. O Paris Saint-Germain e o Bayern Munique, campeões dos seus países com umas jornadas de antecedência – o clube francês foi até campeão europeu há três semanas, o que esvazia o argumento de que estará em final de estação –, terão tido a possibilidade de planificar este Mundial de uma maneira diferente de um Inter Milão, de um Chelsea, de um Borussia Dortmund ou de uma Juventus, que passaram as últimas rondas dos campeonatos a lutar por objetivos, fossem eles o título ou a qualificação para a próxima Champions, seja como for sempre suficientes para levar ao acúmulo de fadiga central. Ora ganhar o Mundial implica manter o foco até 13 de Julho. Meter a seguir quatro semanas de férias e juntar-lhes as seis de pré-época implicaria recomeçar a competir a 21 de Setembro – a fase regular da Liga dos Campeões começa a 16, mas as primeiras jornadas dos campeonatos estão marcadas para o terceiro ou, nalguns casos, o quarto fim-de-semana de Agosto. Corta-se nas férias? Na pré-época? Entende-se que a primeira fase do Mundial é para pegar leve? Ou assume-se que as rondas iniciais dos campeonatos são para jogar com despreocupação, como os brasileiros olham para o início dos Estaduais, em Janeiro, quase sempre jogados com equipas de reservistas ou de sub23? Ninguém sabe a resposta, pela simples razão de que não há uma resposta previamente estabelecida.
Mal, aqui, está o RB Salzburgo, que acabou o campeonato austríaco a 24 de Maio, está no Mundial e entrará na segunda pré-eliminatória da Champions, a 22 de Julho, nove dias depois de uma final a que, em princípio, não acederá. Ou o Benfica, que recomeça a competir já no final de Julho, a 31, com a Supertaça, e depois, a 5 ou 6 de Agosto, na terceira pré-eliminatória da Champions, enfrentando a partir daí uma Liga tão dominada pelos grandes que cada ponto perdido é um tiro nas hipóteses de a ganhar. O que este Mundial nos diz não é se os brasileiros poderiam ganhar a Champions ou se os clubes portugueses teriam condições de se impor no Brasileirão. É que quando se muda uma equipa de contexto, mudam-se todas as premissas que levam à sua formação: uma equipa portuguesa na Liga Espanhola ou na Premier League, por exemplo, teria logo mais receita e uma maior capacidade de retenção de talento, o que lhe abriria novas perspetivas competitivas. O que o Mundial nos diz é que toda a preparação e planificação das temporadas tem de ser refeita de acordo com prioridades. E só uma mais firme implantação da competição num calendário europeu já de si sobrecarregado permitirá uma mais clara definição do que vale a prova na hierarquia dos interesses e prioridades de cada um.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira (excetuando feriados) enquanto houver equipas portuguesas no Mundial de clubes. No dia após o derradeiro Último Passe de 2024/25 sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia. A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h) e apenas para subscritores Premium. A partir daí, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.