O FC Porto e o equilíbrio global
A superioridade do Palmeiras permitiu aos sul-americanos a ilusão. Mas o empate que um FC Porto em fim-de-estação e em crise arrancou, leva-nos a outra ideia acerca do equilíbrio mundial.

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Se o Campeonato do Mundo de clubes servia para compararmos contextos, pormos frente a frente mais do que os campeões de cada continente, que se encontram em Dezembro ali para os lados dos petrodólares, em duelos influenciados pela grande diferença de investimento nos maiores emblemas europeus, que é onde está o dinheiro, a história que o primeiro fim-de-semana de competição nos contou não chegou para se tirarem conclusões mas aponta-nos um caminho. É verdade que o Botafogo até ganhou aos Seattle Sounders – o que nos leva à segunda questão, a dos critérios de qualificação, que o tempo dos Sounders já lá vai... – e que o Palmeiras foi melhor do que o FC Porto, no empate a zero de ontem à noite. Mas o facto de a melhor equipa sul-americana da atualidade não conseguir ganhar a um FC Porto em crise profunda e em final de época já é em si um motivo de reflexão acerca de onde está hoje o fulcro do poder desportivo no futebol mundial.
Hoje em dia, com o advento das SAF – sociedades anónimas de futebol – e a racionalização do investimento que elas deveriam trazer, o Brasil tornou-se um destino financeiramente apetecível para jogadores e treinadores de classe média-alta de futebóis periféricos na Europa como é o português. A Série A do Brasileirão não tem o poder económico das Cinco Grandes Ligas europeias, mas se ainda há diferenças entre as suas maiores equipas e as melhores de Portugal elas não são financeiras. Depois, é claro que não se podem extrair conclusões de um jogo – nem sequer de uma edição do Mundial. Seja como for, e quando ainda falta entrarem em competição o Flamengo e o Fluminense – já para não falar do River Plate e do Boca Juniors –, as sensações não são fantásticas na perspetiva sul-americana. O Palmeiras mostrou ter um plantel mais rico e profundo do que o do FC Porto, um treinador mais seguro na melhoria da equipa através das substituições e sobretudo menos cansaço, fruto de estar a meio da época e não em horas extraordinárias, mas é preciso vermos que frente a frente estavam a melhor equipa sul-americana do momento e a 58ª melhor da Europa no Opta Power Ranking, até ver a melhor ferramenta para comparar formações de diferentes continentes. Aliás, por alguma razão os 65 – leu bem, 65 – primeiros neste ranking são europeus.
O Palmeiras é 74º e melhor sul-americano, que antes dele ainda aparece o Cruz Azul. E o próprio facto de haver uma equipa mexicana antes da melhor sul-americana é uma espécie de insulto a décadas de Taça Intercontinental e à caraterização de melhor equipa do Mundo historicamente dada ao seu vencedor desde as sagas do Santos FC de Pelé. O Boca Juniors, que esta noite enfrenta o Benfica (24º) é 132º, o que, se fizéssemos a transposição para o ténis, transformaria o duelo de mais logo numa espécie de Stefanos Tsitsipas-Jaime Faria. O FC Porto, 58º classificado nesse ranking – que seguramente sorverá dados do Mundial para melhorar os critérios de equiparação de contextos que raramente são postos em confronto – sofreu no jogo de ontem, mas falta perceber até que ponto esse sofrimento se deveu à fase do ano em que se disputa o Mundial, com os portistas apanhados ali a meio caminho entre a vontade de irem de férias e a antecipação da próxima temporada e os jogadores do Palmeiras na fase pleutórica da temporada, assim como os nossos à entrada em Dezembro. No final foi Cláudio Ramos a salvar o FC Porto de uma derrota que teria de ser encarada como normal, mas devo dizer que em condições regulares não vejo este Palmeiras a lutar de forma reiterada com nenhuma das equipas de topo na Europa.
Além do guarda-redes, que Abel Ferreira, treinador do Palmeiras, lembrou que era o suplente – “imaginem o que defende o titular”, disse –, o FC Porto mostrou o talento de Rodrigo Mora, capaz até de se impor a Estêvão na batalha dos adolescentes que este jogo anunciava como maior chamariz. O brasileiro, que já tem transferência acertada para o Chelsea, é um par de semanas mais velho do que Mora, que tem tudo para carregar esta equipa do FC Porto em 2025/26. Isso vê-se em cada gesto, na forma como ele conduz em progressão, como muda de direção, deixando adversários sentados, como visa a baliza em remates de ângulo agudo e obtuso – e, apesar de tudo, o facto de o FC Porto ainda o segurar ajuda a explicar um pouco da diferença entre europeus periféricos e brasileiros. Não estou convencido de que Estêvão tenha mais talento do que Mora, mas ele não só foi levado a expressá-lo mais cedo, que já tem 79 jogos pela equipa principal contra 33 do jovem português no FC Porto, como teve mais pressa de chegar à Premier League. De resto, no FC Porto não se viu ainda Gabri Veiga, que fez uma trajetória diferente: foi primeiro ganhar dinheiro à Arábia Saudita e agora pode dar o passo atrás e pensar em competir, com 23 anos. No caso do galego, talvez seja uma questão de adaptação, tanto dele à equipa como da equipa a ele, que o FC Porto mudou a organização para um 3x5x2 que deixa Mora mais solto junto a Samu na frente e depois mete Veiga e Fábio Vieira a fechar atrás com Varela – de forma declarada na fase defensiva, mais híbrida nos momentos atacantes.
Ainda assim, o FC Porto equilibrou os primeiros 30 minutos, quando a explosão de Samu pôde compensar a sua incapacidade para os movimentos em apoio que ele ia tentando. Depois foi-se abaixo, até porque na segunda parte piorou com as substituições e o Palmeiras, não é que tenha melhorado, mas mudou. Raphael Veiga entrou bem, Paulinho também e a troca de Vítor Roque por Flaco López no centro do ataque deu à equipa a possibilidade de capitalizar um jogo mais feito de cruzamentos, igualmente potenciado pelo encostar dos Dragões à sua área. Seja como for, o mais normal é mesmo que Palmeiras e FC Porto sigam neste grupo para os oitavos-de-final, que nem Al Ahly nem Inter Miami devem ter força suficiente para lhes opor qualquer tipo de resistência, mais defensivos os egípcios, a quem pode ser complicado fazer golos, mais imprevisíveis os norte-americanos, com Messi a ter o dever de justificar em campo o absurdo convite que a equipa teve para jogar o Mundial – o Inter Miami não cumpre nenhum dos critérios para jogar a prova, muito menos o de campeão do país organizador, que esse é o Los Angeles Galaxy.
Ainda assim, nem o atroz 10-0 que o Bayern Munique meteu em cima dos semi-profissionais do Auckland City, vencedores das últimas quatro edições (e de doze das últimas 15 disputadas) da Liga dos Campeões da Oceânia, me leva a achar que, além do atropelo que foi o convite a Messi e aos seus amigos, a FIFA tenha definido mal quem devia jogar a prova. O Auckland City ocupa a posição 5072 do ranking Opta, uma à frente do Lagoa, oitavo classificado da Série D do Campeonato de Portugal. Está no Mundial enquanto representante da sua confederação continental – e lá não estão, por exemplo, o Liverpool FC, que lidera o ranking ao dia de hoje, ou outros três clubes que ocupam posições no Top10 – no caso o Arsenal, o FC Barcelona e o Aston Villa. Os neozelandeses são fracos? São. Fraquíssimos. Tão fracos que nem me dei ao trabalho de ver o jogo. Outros casos haverá a apontar, como o de a qualificação para cada edição privilegiar uma equipa que vença a sua Champions quatro anos antes do Mundial e não as que, de facto, estão bem nesta época – daí que vos tenha falado dos Seattle Sounders, atualmente sextos classificados da Conferência Oeste da MLS, campeonato que não vencem há seis anos.
Mas o problema não é tanto o Mundial ter equipas de destinos exóticos ou outras que, ao fim de quatro anos, já não estão tão fortes como quando se apuraram. O problema é haver tanta diferença entre continentes – a ponto de verificarmos que se a FIFA quisesse convidar as 32 melhores equipas do Mundo ao dia de hoje, a julgar pelo ranking da Opta, elas seriam todas europeias (e 14 seriam inglesas). O Mundial de clubes é uma espécie de aberração nos calendários, mas nesse aspeto pode ser um passo no sentido certo, o de permitir que os desfavorecidos cresçam a jogar com quem domina as boas práticas. E por mais longo que seja o caminho, vale a pena dar passos nesse sentido.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira (excetuando feriados) enquanto houver equipas portuguesas no Mundial de clubes. No dia do derradeiro Último Passe de 2024/25 sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia. A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h) e apenas para subscritores Premium. A partir daí, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.