Anselmi e a regressão
Martín Anselmi está a desperdiçar a oportunidade de usar o Mundial de clubes como base de um futuro que, face aos meios à disposição, terá necessariamente de ser simplificado e não complexificado.

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Ainda que o resultado seja altamente penalizador, a derrota do FC Porto com o Inter Miami (1-2), ontem à noite, pode e deve ser analisada, como diz Martín Anselmi, “pelo jogo”. E o que o jogo nos disse foi que este FC Porto continua a estar muito curto para aquilo que se exige do clube, seja por cansaço de uma época longa, por falta de qualidade de um plantel exíguo em opções, por não ter tido ainda tempo de treino suficiente para adquirir a ideia do treinador ou por inconstância deste relativamente ao que quer ver à equipa. A verdade é que a muito provável eliminação dos Dragões na fase de grupos do Mundial, a somar ao facto de terem sido a primeira equipa europeia a perder com um clube da Concacaf, em jogo oficial, em toda a história do futebol internacional, vem deixar o pavio muito curto a Anselmi quando se pensa na preparação da próxima temporada. E isso, sendo da responsabilidade do argentino, não é culpa dele.
Até as explicações dadas por Anselmi para o que vimos ontem em campo são paradigmáticas tanto da sua matriz de pensamento como dos problemas que o FC Porto enfrenta. O treinador identificou o maior problema da primeira parte no plano defensivo – o 4x4x2 do Inter Miami desdobrava-se de maneira a que os norte-americanos ganhassem superioridade no espaço interior à frente da área portuguesa. Messi saía da zona de ação de Suárez, baixando em apoio para perto de Busquets e Cremaschi, os dois médios-centro, e aos três ainda se juntava o médio-ala esquerdo, Segovia, sempre a jogar muito por dentro. Era ali que o FC Porto estava vulnerável. Mas, sendo verdade que Cláudio Ramos impediu duas situações de golo iminente, foi a equipa portuguesa que se pôs em vantagem e, mesmo antes do intervalo, Mora até podia ter feito o 2-0 e Varela acertou no poste da baliza de Ustari. Percebendo o problema, Anselmi aproveitou o intervalo para mudar a pressão: mobilizou Mora para encaixar em Busquets e, com Varela, Fábio Vieira e Gabri Veiga, fazer ali um quatro para quatro. “Quando corrigimos foi tarde”, queixou-se o treinador. E não, não foi. Porque é verdade que isto é ver o jogo a partir do resultado e não “a partir do próprio jogo”, como quer o treinador, mas foi depois do intervalo que o FC Porto sofreu os dois golos. E ofensivamente foi sempre pobre. Já o tinha sido no primeiro tempo e continuou a sê-lo no segundo.
Há uma imagem na primeira parte de Anselmi a gritar aos jogadores: “Para a área!”. Fê-lo ao mesmo tempo que Francisco Moura ia executar um lançamento lateral e admite-se que tenha sido especificamente acerca desse momento de jogo – mas não me parece, até porque a bola saiu curta das mãos do lateral. O mais provável era mesmo que o treinador estivesse a pedir que os seus jogadores jogassem mais direto, de forma a aproveitar a potência muscular de Samu e a sua capacidade para corridas longas. O que é um tiro no porta-aviões em todos os que, no seguimento de uma contra-tendência cada vez mais popular no futebol, vêm agora atribuir os problemas coletivos do FC Porto à inadequação dos jogadores ao sistema do treinador e a uma teimosia deste na manutenção de uma ideia desadequada ao grupo. O problema deste FC Porto não é a insistência numa ideia – é precisamente a regularidade com que Anselmi tem vindo a mudar de ideias. E não é só relativamente ao uso a fazer de Samu, tão forte nas suas cavalgadas como inapto para ligar jogo em apoio. Durante o campeonato, vários foram os jogos em que o FC Porto mudou o sistema em andamento, começando com linha de três, passando a dada altura para quatro e mais tarde voltando a três, como aconteceu ontem. E a questão fundamental nem é essa – é mais a de, ao fim de cinco meses de trabalho com este técnico, nem o plantel ter ainda conseguido consolidar processos fulcrais como a primeira e a segunda fases de construção.
A pobreza ofensiva do FC Porto vem de trás, da incapacidade da sua linha atrasada construir. É porque os jogadores não são fantásticos? Sim, também. Daí a tentativa recente de colocar ali Martim Fernandes, por exemplo. Mas é sobretudo porque a equipa ainda não encontrou o conforto nos processos que procura, porque os executantes mudam com tanta frequência de missão que não chegam a criar rotinas. Já jogou ali Eustáquio atrás, entre dois centrais mais clássicos. Nessa altura, pedia-se aos centrais de fora que avançassem com bola até perto da área adversária. Ultimamente já ali aparece Martim, mas com ação mais limitada, e a equipa recorre mais à qualidade do serviço longo de Marcano. Depois, à frente, já experimentou o 3x2x5 a que voltou ontem, com Fábio Vieira a baixar para segundo médio, a partir do lado esquerdo, de onde pudesse alternar jogo curto com jogo longo. Mas recorreu igualmente ao duplo losango, por exemplo com o Palmeiras – com Mora solto, a 10, e depois Gabri e Fábio como médios interiores, à frente de Varela, que era simultaneamente vértice mais recuado do losango da frente e mais avançado do que formava com os três centrais em momento de saída de bola. Tudo isto pode fazer imenso sentido no plano estratégico. Porém, se acabar por não dar a volta à situação, Anselmi não terá fracassado por não perceber de futebol, mas mais por perceber tanto que não consegue que o acompanhem. Uma das razões que leva muitos teóricos excelentes a falhar na prática é o serem uma espécie de “adiantados mentais”, é o facto de acharem que as coisas são tão fáceis e evidentes que podem ser mudadas com um estalar de dedos. E quanto menor é a qualidade de um plantel, quanto mais incómoda está a sua situação, mais convém simplificar, construir uma base estável que depois possa permitir que a equipa cresça através da introdução de nuances.
A situação do FC Porto neste Mundial está muito complicada. Para se apurar tem de ganhar ao Al Ahly e esperar que o Inter derrote o Palmeiras – sendo que ao menos um dos resultados terá de ser por dois ou mais golos de diferença. Um eventual empate a quatro pontos com os norte-americanos, que acontecerá se o FC Porto e o Palmeiras ganharem na última ronda, vai sempre desfavorecer a equipa portuguesa no primeiro critério de desempate, que seria o confronto direto com o Inter. O mais certo, por isso, é que os Dragões voltem para casa logo a seguir ao São João, para se centrarem na preparação da próxima época. E esta exigirá mais qualidade no plantel, sem dúvida, mas igualmente um treinador que complique menos a sua própria missão, procurando consolidar processos e dar conforto aos jogadores nas missões que lhes confia. Tudo com uma pré-época que será necessariamente feita à pressa, depois de umas curtas férias, e com a legitimação popular em baixa. Será Anselmi capaz dessa espécie de regressão? Essa é a maior dúvida que se coloca neste momento. Mas se não o for, é certo que a responsabilidade será dele, mas a culpa é de quem avaliou o perfil do treinador que se estava a contratar.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira (excetuando feriados) enquanto houver equipas portuguesas no Mundial de clubes. No dia do derradeiro Último Passe de 2024/25 sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia. A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h) e apenas para subscritores Premium. A partir daí, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.
Adiantado mental é uma expressão de génio. Parabéns!
Anselmi parece o Keizer do Villas-Boas. Ou nem isso, já que Keizer até arrancou bem e ganhou duas taças. Acho que o Porto está a perder tempo ao manter este treinador.