A virada de Aveiro
Nunca se tinha visto uma coisa assim. A Supertaça de 2024 é daquele material épico que um dia se poderá contar aos netos. Mas como é que as duas equipas chegaram ali e como é que dali saíram?
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A extraordinária reviravolta operada pelo FC Porto no jogo da Supertaça, contra o Sporting, de 0-3 aos 25 minutos para 4-3 após prolongamento, levou naturalmente os universos dos dois clubes a estados de espírito diametralmente opostos em menos de duas horas e vai, sim, tal como reconheceu Rúben Amorim no final do jogo, ter impacto nos tempos que se seguem. Numa caixa de perguntas que abri antes do desafio nas minhas stories de Instagram, um de vós questionou-me acerca de quem tinha mais a perder naquele jogo. A essa pergunta já nem cheguei a responder, mas vou fazê-lo agora. Para dizer que as coisas não podiam ser colocadas naqueles termos, que não havia quem tivesse mais e menos a perder. O que havia, sim, eram coisas diferentes a ganhar e a perder. Na virada de Aveiro, o FC Porto ganhou mais um troféu, primeiro que tudo. Mas, além de uma sensação porventura exagerada e até perigosa de estar num patamar em que na verdade ainda não está, terá ganho tempo para trabalhar. O Sporting, por sua vez, ganhou dúvidas e perdeu convicções. Face à responsabilização até algo excessiva que lhes foi atribuída depois do jogo, os reforços precisam de encontrar um ponto intermédio entre o “nem quero saber, que sou muito bom” e o “fui o pai da derrota”, duas atitudes que, se extremadas, lhes afetarão na mesma medida a afirmação. E falta perceber até que ponto o treinador continuará a acreditar que lhe é possível operar tão rapidamente a revolução a que se propôs para 2024/25.
O FC Porto, na verdade, além de estabilidade financeira e de opções para o plantel – seja por vir a ser capaz de manter as que tem, sem grandes perdas de mercado, ou por encontrar o fôlego suficiente para ainda lhes acrescentar alguma coisa –, do que mais precisa é de tempo, tranquilidade. Antes do jogo e até ao intervalo, o que mais se ouvia e lia por aí era que este era “o pior Porto de sempre”. Pediam-se os regressos de Pepe e de Sérgio Conceição, para pôr fim ao período das trevas que se seguira à substituição de Pinto da Costa por André Villas-Boas. Depois do jogo, é certo que se viram elogios à condução de Vítor Bruno – e eu ainda estou impressionado com a forma absolutamente analítica e nada emotiva com que ele falou daquela montanha-russa que foi a partida logo após o final –, mas do que se fala e se lê mais é acerca do ADN Porto, da raça que nunca se vergará. Vamos ser honestos: o maior mérito de Vítor Bruno foi ter bem claro aquilo que a sua equipa podia fazer nesta altura e operar todas as mexidas nas alturas certas. Os discursos de motivação são mais importantes nos filmes do que na realidade, e mesmo no cinema precisam de música de fundo em crescendo para dar resultado. É claro que se fazem, é claro que num abraço coletivo com três gritos uma equipa pode encontrar um acréscimo de força antes de entrar em campo, mas nunca é isso que faz verdadeiramente a diferença.
Querer agora sublinhar acima de todos os outros o mérito motivacional de Vítor Bruno – em detrimento do mérito que foi verdadeiramente decisivo, que foi tático e estratégico – é mais fácil de passar ao público em geral do que explicar em que medida a passagem de Galeno para lateral e a mudança de lado de Martim Fernandes desequilibrou o 4x4x2 do Sporting, mas é tão desajustado como foi dizer que esta equipa não sobreviveria à perda de Sérgio Conceição no momento em que ela deu três golos de avanço logo a abrir. Tanto uma ideia como a outra vão buscar factos reais e optam por aproveitar os mais fáceis de apreender de maneira a criar narrativas de sentidos opostos – e é aí que está o maior ganho do FC Porto na virada de Aveiro. É que, ganhando a Supertaça, o FC Porto assegurou que, para já, vinga a ideia de que a equipa vai lançada. E, mesmo que o treinador saiba que isso não é bem verdade – e ele até o disse, repetidamente, e creio que sem falsas modéstias, depois do jogo –, isso dá-lhe tempo para trabalhar sem ter as viúvas do seu antecessor e chefe de equipa à perna. Realisticamente, o FC Porto ganhou porque apostou mais na estabilidade de rotinas e comportamentos, porque a equipa técnica deu uma injeção de confiança certa a jogadores que não contavam – Vasco Sousa e Ivan Jaime à frente de todos –, porque Vítor Bruno foi mais ágil a mexer do que Rúben Amorim, porque no final teve alguma fortuna, no desvio e no arco que levou o remate do 4-3, mas a vitória de sábado não quer dizer que a equipa esteja pronta. O FC Porto ganhou a batalha, mas está muito longe de ganhar a guerra que aí vem.
Ora foi com os olhos nessa guerra mais longa que Rúben Amorim fez aquilo que aos olhos de muitos parece ser incompreensível: mudou tudo na organização tática da equipa que há três meses foi campeã nacional com um avanço confortável, trocando o 3x4x3 de quatro anos por um 4x4x2 que muitos ainda se recusam a ver mas que acabarão por aceitar, porque ele está lá. Ainda ontem, antes de entrarmos no Trio de Ataque, o programa de domingo à noite da RTP3 no qual ontem participei, me dizia o Nuno Gonçalves, o músico dos The Gift que lá está como adepto leonino: “se funcionava, porquê mudar?” Não me ocorreu melhor forma de explicar o que estará na cabeça do treinador do que responder com duas perguntas: “Qual foi a tua música mais bem-sucedida? E porque não a replicaste vezes sem conta com pequenas variações?” O Nuno respondeu-me que são coisas diferentes – e são –, que a música é um processo criativo e liderar equipas de futebol não – e disto já tenho dúvidas... No caso dos treinadores, a necessidade de mudança nascerá do facto de ser preciso lidar com as contra-medidas a que o estudo das fórmulas vencedoras abre caminho. Rúben Amorim quis mudar antes que os adversários pudessem pôr em prática as formas de lhe travar o modelo e as dinâmicas e acabou por querer fazê-lo de forma demasiado acelerada. Foi como se fizesse malabares com demasiadas bolas ao mesmo tempo – por uns momentos, impressionou, mas depois acabou por deixar cair uma ou outra. Quatro, na verdade. Além de que, tão centrado na mudança radical que tinha operado, pareceu tolhido por um torpor estranho, que o levou à inação enquanto o adversário mudava as pedras em campo.
No fim, a derrota leonina teve dois réus identificados acima de todos – e até isso me parece exagerado – que foram o guarda-redes Kovacevic e o defesa Debast. O primeiro devia ter feito mais no 4-3, que sofreu um desvio mas longe dele e nem sequer ia com tanta velocidade assim, dando-lhe o tempo de reação de que ele precisaria. E o segundo não só errou no primeiro golo portista, cortando uma bola longa de “rosca”, de modo que ela caiu nos pés de Galeno, como depois ficou curto na tentativa de corte do cruzamento que Nico González transformou no 3-2. Face aos erros, é importante que tanto um como o outro percebam o que fizeram mal e assumam, porque só se o fizerem melhorarão. Mas não deixam de estar válidas as razões que levaram o treinador a preferi-los aos concorrentes: Kovacevic joga melhor com os pés e controla melhor a profundidade do que Israel, Debast tem mais qualidade na saída baixa – o atrair atrás para depois esticar na frente que serve a Gyökeres, por exemplo – do que qualquer outro central leonino, à exceção talvez de Inácio. No Sporting que vai abrir o campeonato já na sexta-feira, toda a gente tem de fazer reflexão antes de decidir uma coisa muito simples: a mudança é para continuar? O clima a enfrentar não vai ser fácil, mas não me parece suficiente para mudar as convicções. Sendo que uma coisa é evidente: o tempo que o FC Porto ganhou, o Sporting perdeu.
O erro de Amorim é que não se limitou a incluir uma pequena nuance, o que lhe dá sempre grande sucesso. Foi que fez uma revolução no sistema táctico que, confesso, tenho dificuldades em entender, um 442 mas que começa com 3 centrais. Penso ser um disparate, deveria recuar para o sistema da época passada e ir aos poucos trabalhando este, se entende ser uma mais valia. Foi demasiado radical e saiu asneira.