A incógnita e o ornitorrinco
Sporting e FC Porto abrem amanhã a época de futebol em Portugal com a Supertaça. Uma equipa que está a tentar tornar-se um híbrido contra outra que soma razões para que não se saiba o que esperar.
Palavras: 1874. Quadros táticos: 4. Tempo de leitura: 9 minutos.
De um lado, uma espécie de ornitorrinco tático, uma equipa que mantém o treinador, mudou alguns jogadores e parece estar a trabalhar uma diversidade de comportamentos que poderá fazer dela um híbrido dificilmente catalogável. Do outro, o plantel que menos mexeu entre os nossos grandes, mas com razões mais do que suficientes para instigar a dúvida entre aqueles que tentam adivinhar como vai apresentar-se, porque mudou o treinador, porque ainda assim o novo era o adjunto do anterior, e porque se criou uma narrativa acerca da forma em que se apresentaram os seus internacionais no regresso mais tardio de férias, depois das provas de seleções. Sporting e FC Porto vão discutir amanhã (20h15, RTP1) a Supertaça com que se abre a temporada de 2024/25 e nesta antevisão vou tentar ajudá-lo a entender aquilo que mudou e o que ficou na mesma em cada uma das duas equipas desde o dia em que fecharam a época passada, na final da Taça de Portugal.
Ver jogar este Sporting recorda o paradoxo do ornitorrinco, um animal que se decidiu que era um mamífero, mas cuja fémea põe ovos, tem estrutura óssea próxima da de um réptil e pelo nome (“ornito...”) ou pelo bico aparentado com o do pato se assemelha a uma ave. Assim está a quinta edição do Sporting de Rúben Amorim, que se inclina para defender com uma linha de quatro atrás, perdido que foi Coates, mas que não só nessa linha inclui três centrais – e creio que até pode vir a incluir quatro – como depois varia entre a saída de bola a três e a quatro, neste caso com dois centrais abertos e um médio entre eles. O jogo com o Athletic Bilbau deixou ver a capacidade da equipa para alternar entre estes dois comportamentos, o que pode ajudar a pôr definitivamente de lado a tal frase de Sérgio Conceição sobre o Sporting de Rúben Amorim, que de acordo com o ex-treinador portista era “fácil de entender mas difícil de anular”.
Em início de organização ofensiva, o Sporting teve momentos em que reproduziu o modelo da época passada, ainda que com uma pequena nuance, a que mais à frente aludirei. Os leões procuram manter a saída baixa, a atrair a pressão, para ganhar espaço mais à frente, e nesse aspeto beneficiam de dois upgrades, como são as entradas de Kovacevic, melhor com os pés do que qualquer dos seus antecessores na baliza, e Debast, que tem nos momentos com bola o ponto forte. Além disso, houve ocasiões em que a equipa manteve a saída a três mais dois, isto é, com os três centrais a chamarem a primeira linha de pressão adversária, procurando depois ligar com um dos médios que se colocam à sua frente – se o adversário abrir a primeira linha para proteger a saída por fora – ou subir com bola através de um dos centrais exteriores, de forma a ligar com os alas ou diretamente com um dos avançados – se o adversário optar por proteger o corredor central. E é aqui que surge a nuance. É que se contra adversários que defendiam com pouca gente mais alta se via muito Coates subir para receber atrás da primeira linha de pressão, soltando um dos médios – geralmente Morita – para a linha da frente, contra o Athletic o que se viu mais foi Debast, neste caso o central do meio, a dar segurança para a bola poder rodar por trás.
A saída a três, no entanto, foi menos usada do que a saída a quatro, feita com a inserção de Morita entre o central do meio e o da esquerda, sendo que tanto este – Inácio – como o que se colocou à direita – Quaresma – abrem como se fossem laterais no momento ofensivo. Esta ideia, que Mateus Fernandes conhece bem do Estoril de Vasco Seabra, onde era ele que fazia o papel que ali esteve reservado a Morita, destina-se a dar largura num primeiro momento de saída de bola e a libertar um dos centrais que se colocarão por fora, aproveitando-lhes as posses e os passes progressivos. Tanto Quaresma como Inácio têm essas caraterísticas – como as têm St. Juste, Matheus Reis ou até Fresneda – o que lhes permite sair de bola controlada e ligar com um dos homens à sua frente. Se calhar a ser alguém com essa capacidade, a natural inclinação do adversário para esse lado pode depois conduzir a um passe a toda a largura do campo, aproveitando o adiantamento do médio-ala direito (que era Quenda) ou do lateral-esquerdo (Catamo). Tanto um como o outro, porém, têm mais tendência a procurar depois o espaço interior e não tanto a rotura seguida de cruzamento, algo que sublinha a falta que fará Nuno Santos.
Defensivamente, o Sporting encaminha-se cada vez mais para a linha de quatro atrás que já assumia no início de organização defensiva na época passada. A diferença é que se então os leões começavam com quatro, encostando um central à linha do lado do ala mais ofensivo, mas acabavam com cinco, quando o adversário se aproximava da sua área, agora é muito raro meterem cinco homens nesta linha mais recuada. Contra o Athletic Bilbau, Quenda manteve-se sempre numa segunda linha, a par de Hjulmand, Morita e Pedro Gonçalves, chamado para fechar a esquerda, enquanto que Trincão se juntava a Gyökeres na frente. Vítor Bruno, técnico do FC Porto, lembrou há pouco que isto pode funcionar também com Trincão por fora, na vaga de Quenda, e Edwards por dentro, próximo do sueco, e na verdade o atacante inglês surgiu a jogar por dentro na ponta final do último ensaio. A questão é que ao ter menos um homem atrás, o Sporting terá mais dificuldades para cobrir toda a largura do campo. Certo é que o Sporting terá sempre de se defender com agressividade na frente – e o próprio Amorim o lembrou há minutos, quando anteviu o jogo de amanhã.
Ora precisamente a capacidade de pressão alta, que era uma das imagens de marca do FC Porto de Sérgio Conceição, foi uma das particularidades à qual foi marcada falta no último jogo de preparação que a equipa de Vítor Bruno fez, com o Al Nassr. Se foi para enganar ou se a cara deste novo FC Porto vai mesmo ser esta, a de uma equipa mais curta, capaz de diminuir os espaços entre linhas no momento defensivo e menos espalhada pelo campo na tentativa de apertar os adversários, só mesmo o técnico saberá. É que toda a atuação recente de Vítor Bruno parece ter sido no sentido de estimular a incógnita acerca do seu futebol, aproveitando o facto de personificar a mudança – novo treinador – dentro da continuidade – era adjunto do anterior. Ainda por cima quando se criou um clima de antagonismo entre ele e o anterior chefe de equipa, surpreendido com o nome escolhido para o surpreender quando se soube que ele não ia continuar.
Vítor Bruno fê-lo, por exemplo, quando falou dos jogadores que vieram mais tarde de férias, porque estiveram até mais tarde nas seleções nacionais – não só não os utilizou ainda nos jogos de preparação como disse que eles voltaram ao trabalho com métricas insuficientes, lançando a dúvida acerca da sua capacidade para jogarem amanhã. Há pouco, disse que uns vão jogar, outros vão para o banco, outros para a bancada, mas é claro que mesmo que o FC Porto mantenha os posicionamentos e as rotinas – e muitos deles já eram os da época passada – é muito diferente ter Grujic ou Nico González no primeiro par de médios, como será diferente ter Ivan Jaime ou Galeno lançado numa das alas do ataque. Rúben Amorim até já desvalorizou aquilo a que chamou as “caraterísticas individuais” dos jogadores adversários, preferindo alertar os seus homens para os posicionamentos, mas a incógnita estará presente até se saber o onze inicial do FC Porto. E acaba por ser importante até nas bolas paradas, onde Grujic tem um peso que não tem Pepê, que poderia entrar se jogasse Nico mais atrás, por exemplo – algo ainda mais relevante quando se sabe que sem Coates o Sporting perdeu boa parte da sua capacidade no jogo aéreo.
Ainda assim, a única alteração mais notória entre o processo do FC Porto de Conceição e o do FC Porto de Vítor Bruno foi o comportamento defensivo, que é agora menos agressivo na frente e mais organizado atrás. A primeira linha de pressão do 4x4x2 defensivo do FC Porto, com o terceiro médio a par do avançado-centro, baixou uns metros em relação ao que a equipa fazia, o que se reflete depois na forma como a segunda linha também não vai atrás dos laterais adversários, por exemplo. Em si, a mudança não é problemática, porque essa crescente rigidez na organização, menos dependente dos comportamentos adversários, e a maior proximidade entre linhas reduz a capacidade do opositor para jogar dentro de um bloco de espaços muito mais apertados. O problema é que, pela quantidade de bolas descobertas que o FC Porto permitiu em início de organização ofensiva ao adversário, vai criar a si mesmo problemas de cobertura da profundidade, face a uma última linha defensiva que se manteve sempre subida. Durante boa parte do jogo, o FC Porto defendeu com a equipa concentrada em 30 metros, uma das bases do pressing zonal que conheceu o apogeu nas equipas de Sacchi ou Zeman, nos anos 80 e 90 – por oposição ao pressing de referências mais individuais que a equipa fazia e que é mais usual hoje em dia por todo o mundo –, mas uma forma de jogar que exige agressividade na frente.
A atacar, as diferenças podem também ser grandes com a inclusão de alguns dos que vieram mais tarde para estágio. O FC Porto fez saída a quatro, abrindo os laterais no campo e usando muito o guarda-redes para variar o lado por onde começa a jogar, procurando quase sempre ligar jogo com o “retângulo virtuoso” que a equipa de Sérgio Conceição já formava no corredor central nas últimas temporadas. Fá-lo com a aproximação do ponta-de-lança (jogou Namaso no desafio com o Al Nassr, mas Evanilson faz bem isso também) e do terceiro médio ao par de centrocampistas que se colocam à frente da primeira linha de saída, em movimentos de apoio que atraiam os centrais adversários, de forma a depois explorar as diagonais para dentro dos dois extremos, que são quem se coloca mais à frente no campo. Na verdade, o FC Porto começa a atacar em 4x2x2x2, sendo que os dois mais avançados saem de fora para dentro e não do corredor central. Neste jogo foram Gonçalo Borges e Ivan Jaime quem desempenhou a tarefa, mas uma daquelas posições grita por Galeno e a outra por Francisco Conceição, se eles acabarem por ficar no Dragão.
No ano anterior havia o camaleão este ano há um ornitorrinco, bem por este andar vamos ter a arca de Noé esgotada num piscar de olhos, mas vai ser dificil encontrar as vacas e os bois, esses deixaram o pasto dizimado e saíram pela porta pequena sem ninguém ter dado conta.