A traição de Klopp
Jürgen Klopp vai ser o novo diretor global de futebol da Red Bull. Em Liverpool grita-se por “hipocrisia” e em Dortmund por “traição”. Mas a verdadeira traição de Klopp não foi agora. E continua.
Palavras: 1212. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Podemos sentir-nos traídos quando alguém faz exatamente o que lhe manda a sua natureza? O que está em causa no anúncio do regresso de Jürgen Klopp ao futebol, pouco mais de oito meses após ter revelado a intenção de fazer um ano sabático e cinco depois de ter deixado o banco do Liverpool FC, é a moral por trás da fábula do sapo e do escorpião. E, no entanto, sentem-se traídos os adeptos do Borussia Dortmund, em cujo banco ele ainda há dias esteve, sempre divertido e a mostrar sentimento de pertença, na festa de despedida dos polacos Pieszczek e Blaszczykowski, porque o seu herói escolheu o inimigo para regressar, assinando como diretor global de futebol do grupo Red Bull. E sentem-se enganados os adeptos do Liverpool FC, que veem uma grande dose de hipocrisia no abandono feito em nome do esgotamento e, depois, num regresso tão repentino. E, no entanto, não é aí que se vê a traição de Klopp.
Vamos a factos. Jürgen Klopp anunciou a 26 de Janeiro que ia abandonar o lugar de treinador do Liverpool FC. Fazia-o, explicou na altura, porque estava a ficar “sem energia” – e o facto de voltar ao serviço de uma marca de bebidas energéticas é uma piada que se faz a si própria. “Se voltarei a trabalhar? Eu conheço-me e sei que não consigo ficar parado. Encontrarei outra coisa para fazer. Mas não treinarei um clube nem uma seleção por pelo menos um ano”, clarificou o alemão em Março. O último jogo de Klopp foi a vitória sobre o Wolverhampton WFC (2-0) no encerramento da Premier League, a 19 de Maio. Menos de cinco meses depois, a 9 de Outubro, soube-se que ele vai começar a trabalhar a 1 de Janeiro como diretor global de futebol do grupo Red Bull. O grupo austríaco é dono do RB Leipzig, do RB Salzburgo (onde está Pepijn Lijnders, ex-adjunto de Klopp em Liverpool e, antes, treinador e coordenador de formação no FC Porto), do New York Red Bulls e do RB Bragantino (o de Pedro Caixinha), além de ser acionista minoritário no Leeds United. O cargo que ele agora vai ocupar foi criado para Ralf Rangnick, o atual selecionador da Áustria e maior mentor de Klopp bem como de todos os treinadores da escola do Gegenpressing, de que ele é, hoje, o mais afamado representante (e há mais sobre ele aqui).
O encaixe é, por isso, perfeito. Ou, se calhar, não. Mas já lá chego.
Vejamos, primeiro, o que quererá Klopp com esta decisão. Dinheiro? Seguramente que sim. Klopp pode ser glorificado como um herói dos que gostam do futebol puro, uma espécie de escudeiro desarmante da espontaneidade face ao calculismo, mas aquela dentição que se vê a brilhar do topo da bancada sempre que ele sorri não se consegue sem o rendimento do futebol-indústria. Se há coisa clara acerca do alemão é que ele está no mercado dos ganhos: faz mais anúncios do que Messi e Ronaldo juntos e passou a última década a trabalhar para um dos mais poderosos grupos económicos com presença no futebol, que é o americano Fenway Sports Group. Portanto, aí nada mudou. Contudo, se a ideia fosse só essa, a de ganhar dinheiro, ele podia bem ter ficado no Liverpool FC, onde seguramente lhe dariam um contrato vitalício e de onde saiu porque quis. Portanto, haverá algo mais.
Ontem foi revelado na Alemanha que o contrato que Jürgen Klopp fez com a Red Bull inclui uma cláusula que lhe permite libertar-se se for para assumir a seleção nacional da Alemanha. Mas a seleção está entregue a Julian Nagelsmann, outro dos discípulos de Rangnick. Nagelsmann, que tinha acabado de deixar o Bayern Munique, alegadamente vetado por uma administração que não quer treinadores-vedeta – e por isso ali nunca veremos Klopp –, substituiu Hansi Flick como selecionador nacional em Setembro de 2023, fez um bom trabalho na recuperação da equipa a tempo de chegar às meias-finais do Europeu de 2024 e já renovou contrato até ao final do ciclo que se conclui com o Mundial de 2026. Portanto, se a ideia fosse a de se mostrar vivo para assumir a seleção, o caminho seria demasiado longo. Quererá ele, então, começar como diretor-global-não-sei-do-quê, um cargo que tanto pode ser tudo como pode não ser nada, só para, ao mínimo sinal de crise, assumir um dos clubes do edifício Red Bull? Respeitosamente, também não faz nenhum sentido. Então um tipo deixa o Liverpool FC, onde é visto como a segunda vinda de Jesus Cristo à Terra, para se ir meter no RB Leipzig ou no RB Salzburgo? Claramente, a ideia também não é essa – o que não quer dizer que ele um dia não venha a ter de descer ao terreno...
O que me parece a mim, que nunca conheci Klopp mas li muito sobre a sua personalidade, é que o alemão é, neste momento, um homem confuso. Klopp era aquele técnico que, quando comandava o Liverpool FC, recusava reuniões chatas de planificação, que discutia os reforços com Michael Edwards de maneira o mais informal possível, pés em cima da mesa, enquanto mastigava uma sandes no sofá do gabinete do diretor-desportivo, que ia de fato-de-treino e sapatilhas para todo o lado porque era assim que identificava o seu ADN. Era filme, narrativa gerada para criar uma personagem? Admito que sim, mas não creio. Quando abandonou o papel de treinador de uma equipa de elite, o alemão estava a fugir das responsabilidades que o cargo implicava, que iam desde as longas sessões de planeamento aos encontros constantes com jornalistas e comentadores de televisão, que em Inglaterra estão nas flash-interviews, antes e depois dos jogos. Klopp nunca fugiu de ser treinador mas sim da dimensão aborrecida do seu trabalho e da parte mediática que ele implicava. E, no entanto, é exatamente por aí que ele se prepara para voltar ao ativo.
Como diretor-geral-de-sei-lá-o-quê no grupo Red Bull não terá de comparecer a três ou quatro conferências de imprensa por semana mas terá a incumbência de dirigir reuniões com um potencial de aborrecimento incomparável acerca do futuro do futebol e das tendências que ele revela. Sendo a empresa que é, é possível que até possa apresentar-se de fato roxo ou púpura, mas dificilmente encontrará justificação para andar de fato-de-treino, que não tem ninguém para treinar. E é aí que está a traição de Klopp. Tal como o sapo não pode queixar-se de o escorpião o ter picado quando lhe ofereceu o dorso para o ajudar a atravessar o rio, pois essa é a sua natureza, ninguém pode agora queixar-se de Klopp ter voltado ao ativo, ainda por cima num grupo que tem tudo a ver com o futebol que ele defende. Como o escorpião, que se viu sem saída face ao curso de água, é ele que está a enganar-se, julgando que será capaz de contrariar a sua natureza. E a natureza de Klopp é estar no campo, tal como ele em breve se aperceberá com toda a certeza.
Nunca entendi a vontade dos treinadores da "elite" do futebol de se ausentarem por um ano de toda a atividade, sendo isto que eles gostam de fazer. Klopp assume um cargo importante numa empresa da batota do futebol, com clubes em todo o lado, que põem em causa a natureza competitiva do futebol, veremos como se adapta. Por outro lado finalmente um treinador de elite está interessado num cargo de selecionador...isso sim é muito raro, pois parece que as federações só conseguem atrair treinadores de 2.ª categoria, porque os melhores não estão nunca para aí virados. E ainda falam do prestigio ou da honra de representar a equipa nacional...