Iniesta e os tiranos
Despediu-se o maior futebolista espanhol da era moderna. Fê-lo com muitos títulos coletivos e quase nada de individual a não ser “o carinho das pessoas”. Resultado da tirania unanimista deste século.
Palavras: 1177. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu canal de Telegram).
Um dos objetivos da vida do pré-adolescente Andrés Iniesta, quando os olheiros do Barça o viram num torneio organizado pelo jornalista José Ramón de la Morena e o levaram para La Masía, era conseguir um dia ganhar o dinheiro suficiente para que a mãe largasse o emprego ao balcão do Lujan, um bar na Avenida Albacete, em Fuentalbilla, e que o pai pudesse deixar de subir e descer andaimes nas obras em que moía o corpo diariamente na cidade onde ele nascera. Quase 30 anos depois, ao anunciar o final da carreira de futebolista, ontem, no Porto Velho de Barcelona, verificou que conseguiu isso e muito mais, que conquistou 38 títulos num palmarés onde só falta mesmo a Bola de Ouro que ele celebrou com Messi, em 2010. Ainda ontem Iniesta contou que não fazia mal, que a maior vitória foi poder ver três tipos da casa (ele, Messi e Xavi) no pódio. “Neste vídeo havia muitas imagens, mas poucas delas foram com troféus”, disse Iniesta a propósito do filme mostrado a quem esteve na cerimónia. Só que nem o facto de ele ter acrescentado que quando fala de orgulho não fala de títulos, “mas sim do carinho de toda a gente”, impede que no dia em que o maior futebolista espanhol de todos os tempos deixa os relvados se reflita acerca do flagelo unanimista que as redes sociais impuseram à geração Z e às que se lhe seguiram. Que foi o que nos levou a todos a dar-lhe menos valor do que ele, tal como outros, teria merecido.
Até à eclosão massiva da internet, das redes sociais e do seu escrutínio constante, a lentidão da propagação da informação – se comparada com a velocidade de hoje... – impunha ao ciclo noticioso a pausa de reflexão que depois Iniesta veio a celebrizar em campo, na organização do ataque das suas equipas. O caminho mais rápido nem sempre é o melhor. E a pausa, essa pausa que ele tão bem sabia decretar em campo, era boa, porque nos permitia pensar além do que estava a acontecer ali, naquele instante. Depois, o ciclo noticioso permanente e o seu constante escrutínio conduziram ao turbilhão informativo e à necessidade permanente de encontrar o melhor. É Ronaldo ou Messi? É Guardiola ou Mourinho? É Real Madrid ou Barça? Deixou de haver meios-termos, bom e mau, que porventura podiam transmutar-se em mau e bom, para existir apenas o melhor e o pior, imutáveis entre si, porque quem era team Messi se entretinha a desfazer Cristiano Ronaldo a toda a hora, que aquilo é só músculo, e quem era team Ronaldo fazia gala de diminuir Messi, que é um anão. Entre a Bola de Ouro de Cristiano Ronaldo em 2008, tinha Iniesta sido campeão da Europa, com 24 anos, e a de Leo Messi em 2023, o português levou cinco galardões, o argentino guardou oito e só sobraram mesmo um para Luka Modric (2018) e outro para Karim Benzema (2022), os únicos que apanharam o júri distraído. Os 15 anos anteriores tinham visto 14 vencedores diferentes, dos quais só um (o brasileiro Ronaldo Nazário) tinha repetido a vitória. É claro que Messi e Ronaldo foram dois extraordinários futebolistas, mas no dia em que Iniesta deixa de jogar vale a pena questionar: até que ponto é que este unanimismo que o impediu de se consagrar ao mais alto nível no plano individual não foi sobretudo um produto da agenda forçada pelas redes sociais e pela sua busca dos extremos?
Não vi jogar Luís Suárez, o único Bola de Ouro espanhol – Alfredo Di Stéfano, na verdade, era argentino... – nem creio que seja correto comparar o jogo da década de 60 com o de hoje, com o que se sucedeu à revolução neerlandesa da década seguinte, pelo que me parece justo dizer que Andrés Iniesta foi o melhor futebolista espanhol da era moderna, à frente de Emílio Butragueño, Raúl González, Xavi Hernández, Sérgio Busquets e Rodri Hernández, colocados por ordem cronológica e não necessariamente de qualidade ou de influência. Iniesta tinha tudo. Tinha técnica, a capacidade de jogar com os dois pés que o tornava tão difícil de prever e, por isso mesmo, de contrariar. Não pode propriamente dizer-se que tivesse golo, que nunca marcou mais do que nove numa só época, mas tinha o golo que contava, como o da final do Mundial de 2010, quando foi à área desbloquear um resultado que os atacantes não conseguiam. E aí se percebe aquilo que verdadeiramente fazia dele especial, que era a sua capacidade de decisão. Iniesta jogava como se estivesse a ver o jogo da bancada, tal era a sua noção dos espaços que todos, colegas e adversários, ocupavam a cada momento. O futebol é um jogo de tempo, espaço e números e joga-se tanto melhor quanto melhor se percebe qual é o tempo exato para se ir ocupar um determinado espaço e fazê-lo com números suficientes para nele causar impacto. O que sobressaía no futebol de Iniesta é que parecia que ele jogava com aquele gráfico dos jogos de PlayStation implantado no cérebro, permitindo-lhe sempre tomar a melhor decisão e no momento exato por perceber antes de cada ação onde estava o espaço e qual era a capacidade dos colegas para o ocuparem no imediato. E foi sobretudo essa noção que lhe valeu o que ele ontem disse valorizar mais no seu percurso: “o carinho de toda a gente”.
Iniesta ganhou um Mundial e dois Europeus com a seleção. Ganhou três Mundiais de clubes, quatro Ligas dos Campeões, três Supertaças Europeias, nove Ligas espanholas, seis Taças do Rei e sete Supertaças de Espanha com o FC Barcelona. Ganhou uma Liga japonesa, uma Taça do Imperador e uma Supertaça do Japão com o Vissel Kobe. Ganhou o respeito de gente tão insuspeita como Pep Guardiola, que no vídeo de tributo ao craque lhe agradeceu a palmada nas costas e as palavras de encorajamento que este lhe endereçou em meados de Setembro de 2008, quando ele só tinha ganho um dos primeiros quatro jogos depois de chegar da equipa B para substituir o campeão europeu Frank Rijkaard aos comandos da equipa catalã. “Vamos bem, Pep”, disse-lhe Iniesta, antes de contribuir com uma assistência para os 3-1 ao Sporting, na primeira ronda dessa Liga dos Campeões, a partida que verdadeiramente abriu caminho ao sucesso do guardiolismo – seguiram-se onze vitórias seguidas e a convicção de que aquele era mesmo o caminho. E Iniesta ganhou ainda uma estátua a 100 metros do local onde ficava o Lujan, o bar onde a mãe deixou mesmo de trabalhar, quanto mais não seja porque fechou e no seu lugar foi fundada a Peña barcelonista Andrés Iniesta, com uma espécie de museu consagrado à carreira do herói local. Não é uma Bola de Ouro, mas também vale alguma coisa.
Ronaldo e Messi foram os melhores jogadores de sempre em todos os aspetos, qualidade, números, palmarés... Mas houve um exagero na atribuição da Bola de Ouro (que nem devia existir), que se deveu mais aos interesses de Real Madrid e Barcelona, do que das redes sociais ou necessidade de unanimidade (que existe no futebol e na política, infelizmente). E quanto a Messi houve uma estranha necessidade de o fazer destacar perante Ronaldo no número de bolas de ouro, que levou a algumas entregas de prémio absurdas (as últimos 3 ou 4 entregas foram politicas). No meio disto tudo houve jogadores injustiçados, se o podemos dizer numa entrega de prémios individual, entre eles Iniesta. Teria Messi sido Messi no Barcelona sem Xavi e Iniesta?
Iniesta teve a infelicidade de ter que viver na mesma era que Messi e Cristiano Ronaldo.
A nao ser assim, teria ganho alguns premios individuais. Tremendo jogador, que classe.