A soma de todas as coisas
Os 4-0 do Benfica ao Atlético Madrid foram uma história de empolgamento, sim, mas foram sobretudo uma lição de estratégia de Lage, a mostrar a relevância da dimensão do jogo menosprezada por Schmidt.
Palavras: 1312. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu canal de Telegram).
A cada jogo que cumpre, Bruno Lage vai marcando as diferenças entre o seu Benfica e o de Roger Schmidt. Se no início a alteração passou muito pelo estabelecimento de empatia com o público, pela comodidade dos jogadores nas missões para eles escolhidas e por um reforço das dinâmicas ofensivas, por vezes até à custa do comportamento sem bola, a vitória (4-0) de ontem sobre o Atlético Madrid não mostrou apenas que a conjugação daqueles três fatores devolveu aos futebolistas o gosto em subir ao relvado, como disse Kökçü na flash interview. Evidenciou também melhorias relacionadas com o treino, que é e será sempre a base de tudo, e uma coisa que em dois anos e meio não se viu no alemão: estudo do adversário e a adaptação estratégica. A contundente vitória de ontem disse-nos que a teoria segundo a qual um clube grande não tem nada que se adaptar ao que os adversários vão apresentar é uma das maiores tretas que nos vendem. Tem, sim senhores.
Que explicação há para o Atlético Madrid ter sido completamente obliterado do ponto de vista ofensivo, incapaz de chegar com vantagem ao último terço, quando até o Gil Vicente, uns dias antes, tinha conseguido criar embaraço à equipa de Lage? Não colhe o argumento segundo o qual os comandados de Simeone estariam em modo-gestão, porque ali jogava-se a Liga dos Campeões. Aceita-se que tenha havido mais concentração e agigantamento dos jogadores do Benfica face à ocasião, mas nunca fui adepto das explicações de jogos com base no arreganho e na vontade. Isso, em princípio, todas as equipas têm. O que houve, sim, foi uma adaptação estratégica que o próprio Lage admitiu, quando lhe pediram para explicar o posicionamento de Di María no momento defensivo e a opção por Tomás Araújo em detrimento de António Silva para central-direito. “Escolhi o onze que me dava mais garantias de cumprir a estratégia que idealizámos”, afirmou o treinador. E isso em nada menorizou o Benfica, porque o que foi alterado não foi a ideia nem o modelo do qual se faz a identidade do futebol de uma equipa. Foram, sim, os posicionamentos em momentos específicos.
O Benfica de ontem começou por variar a construção, com Carreras a aparecer atrás, a par de Otamendi e Tomás Araújo. Com Schmidt, a base de arranque era sempre a mesma, com os dois centrais e os dois médios, ora em quadrado espelhado, ora com um dos médios a dar a tal saída pela esquerda, transformando o dois-mais-dois que já toda a gente sabia de cor em três mais um. A opção de ontem, a dar à equipa uma alternativa de pé esquerdo para esse momento de saída de bola e a compensar o facto de não usar um central canhoto – um pouco como faz Vítor Bruno com Francisco Moura, no FC Porto, desde que encostou Otávio –, mudou aquilo que se pede ao central direito e ao lateral direito. Se sai com Carreras atrás, o Benfica solta o lateral direito e precisa que o central direito seja mais móvel, veloz e competente em construção. São caraterísticas que pedem Bah e Tomás Araújo e não Araújo e António Silva – e foi por isso que Lage mudou. Depois, se quando tinha um lateral mais recolhido e simétrico com o do outro lado, o Benfica ordenava a Aursnes que fosse muito em busca da largura e da profundidade por aquele lado, até para afundar a última linha ao rival e, dessa forma, alargar o espaço nas entrelinhas por onde pudesse aparecer Di María, ontem o que se viu foi Bah a dar a largura e Aursnes mais perto de Florentino no meio-jogo, para ter superioridade numérica no corredor central, onde continuava a surgir Di María, cada vez mais um jogador de meios-espaços e não de corredor.
E se isto são meros ajustes, a maior diferença foi no comportamento defensivo. O Benfica de Lage já vinha sendo capaz de fazer golos, mas não era capaz de evitá-los na baliza de Trubin e o amasso de ontem mostrou uma realidade diferente. O Benfica fez 19 remates contra quatro, onze enquadrados contra zero. Ofensivamente, a equipa continuou a ter um ‘ratio’ excelente entre ações na área (26, de acordo com os números GoalPoint) e os remates: o Benfica chutou uma vez a cada 1,36 ações na área, quando contra o Gil Vicente o tinha feito uma vez a cada 1,61 ações. Mas defensivamente a diferença foi abismal: o Atlético fez quatro remates em 17 ações na área (um a cada 4,25 ações) e o Gil Vicente tinha feito nove remates em 10 ações (um a cada 1,11 ações). O que fica na memória de todos é aquela ação de pressão final, já nos descontos, em que parecia que os jogadores de Simeone queriam acima de tudo que o jogo acabasse, mesmo a perder por 4-0, mas a verdade é que o Benfica ajustou a sua pressão para um bloco médio, por vezes médio-baixo, que punha o foco da ação defensiva mais atrás. Lage mandou a equipa pressionar – ou antes, condicionar – na frente apenas com dois homens, que eram Pavlidis e Di María, dessa forma livre de ter de defender o flanco direito, colocando depois três numa segunda linha de pressão (Aursnes, Florentino e Kökçü) e baixando com frequência Aktürcoglu para ser um segundo lateral na esquerda, fazendo linha de cinco atrás sempre que o ala direito colchonero (Llorente) subia. Daí resultou que o Atlético tenha tido mais ações na área do que o Gil Vicente (17 contra dez) mas menos de metade dos remates (quatro para nove). E que o Benfica tenha reduzido amplamente as ações defensivas no meio-campo adversário (de 19 para nove) mas disso não se tenha ressentido. É que tão importantes como as bolas que se recuperam no meio-campo ofensivo são aquelas que se deixam passar para apanhar a equipa descompensada.
Dir-me-ão que o Benfica não pode jogar assim no campeonato português, onde os adversários também tendem mais a recolher-se atrás do que fez ontem o Atlético. E é verdade. Mas é aí que entra a complexidade do futebol, que não é só uma coisa. Não é só estratégia, não é só tática, não é só técnica, não é só físico, não é só empolgamento – é um pouco de cada coisa e todas acabam por se influenciar umas às outras. Nos jogos em que não puder impor-se através da surpresa estratégica, o Benfica terá de usar outras maneiras de chegar ao objetivo. E, sim, o empolgamento ou a superioridade individual são duas dessas formas. Uma das diferenças fundamentais entre este Benfica e aquele que Schmidt deixou é que os jogadores voltaram a acreditar naquilo que estão a fazer em campo. “Agora posso dizer que adoro jogar aqui”, disse no final do jogo de ontem Kökçü. E isso não se deve apenas à mudança do sistema, do 4x2x3x1 para o 4x3x3 de base, que lhe permite jogar como ele se lembra de fazer no Feyenoord, com mais dois médios. Não tem que ver apenas com as cinco vitórias e os 18 golos marcados pela equipa debaixo das ordens de Lage. Não tem que ver apenas com o tal “ambiente favorável” à equipa que voltou a respirar-se entre os adeptos. É o resultado da soma de todas as coisas.
PS – Hoje, às 22h15, há Futebol de Verdade especial Noites Europeias. Todos poderão ver o programa de comentário à semana europeia, mas quem quiser fazê-lo em direto e participar na conversa tem de ser subscritor Premium. Aqui fica mais uma oportunidade para o fazer:
Como disse antes, não interessa o orçamento, mas sim o que se faz com ele e nem o orçamento, ou o nome, ou o campeonato, faz o favorito ou a melhor equipa. No fim qualquer pode sempre vencer. Sporting e Benfica têm equipas fantásticas, com jogadores fantásticos e fora dois adversários de cada, não há nenhuma equipa muito mais forte que eles os dois, e na terça-feira o Sporting perdeu dois pontos. Existe em Portugal quase um medo cénico de jogar e de ganhar na Europa, que leva a erros de amador como a má escolha de pitons ou a perdas de eficácia ou erros defensivos, imperdoáveis. O Benfica ao contrário do Sporting e com muita pena minha, não jogou "à Portuguesa", antes acreditou no óbvio, que tem qualidade e que podia vencer. Os meus parabéns porque o conseguiu, ao contrário do meu clube...que perdeu dois pontos.