A quadratura do círculo portista
Sérgio Conceição deixou entender que sai mesmo do FC Porto depois de ter igualado Pedroto, com três Taças de Portugal seguidas. Que razões que o levarão a deixar o clube? E o que quer Villas-Boas?
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Ontem, ao contrário do que tinha acontecido na anterior edição da final dos três presidentes, a de 1994/95, o foco estava num treinador. Pela primeira vez vencedor de uma decisão com o Sporting no Jamor, Sérgio Conceição não teve de ceder o palco a ninguém e serviu-se da legitimidade do resultado para, indiferente ao frio que ali sempre se faz sentir quando a noite cai, o ocupar por tempo infindo numa série de encores. Radiante com a conquista, o treinador desdobrou-se face aos jornalistas em declarações, nenhuma definitiva, é certo, mas todas elas no sentido de uma despedida. Não deixa de ser curiosa esta quadratura do círculo portista: no dia em que igualou José Maria Pedroto, até ontem o único a vencer três finais da Taça de Portugal consecutivas, Conceição deu a entender que já colou o selo na carta de despedida e que só lhe falta pô-la no correio, endereçada a André Villas-Boas, que se calhar também não a receberá com desgosto. Em causa estará a mudança de paradigma, deitando para trás das costas a faceta mais bairrista do pedrotismo, e por arrastamento do pintodacostismo, que este treinador incarna como ninguém.
“O meu futuro já está decidido na minha cabeça. Nos próximos dias vou comunicá-lo”, disse Conceição numa ocasião. “[É uma questão de] olhamos para o futuro do FC Porto e de vermos qual é a melhor situação, com tranquilidade”, acrescentou noutra. O mundo está hoje muito diferente do que era há 29 anos, quando Carlos Queiroz se fez fotografar entre Pedro Santana Lopes e José Sousa Cintra, de taça na mão, depois de ter interrompido o longo jejum de títulos do Sporting com uma vitória frente ao Marítimo, numa altura em que o clube transitava de um presidente para o outro. Queiroz era o treinador fétiche de Cintra, que fez tudo o que podia para o ter a liderar uma equipa que foi apetrechando de jogadores jovens que ele comandara nas seleções, incluindo despedir Bobby Robson de forma precipitada, mas nunca esteve na mesma página de Santana Lopes, que julgou sempre ver no técnico uma agenda diferente da dele. A coabitação durou seis desconfortáveis meses da nova temporada até à prova final de que os dois queiram coisas diferentes: antes de um dérbi com o Benfica, em Fevereiro, Queiroz deu uma entrevista à RTP de que Santana Lopes não gostou e, logo após o jogo, soou o chicote que levou Otávio Machado a dirigir os leões na finalíssima da Supertaça (ganha ao FC Porto, em Paris) e na final da Taça de Portugal (perdida com o Benfica, na tarde do very-light).
Quando, esta semana, conforme prometeu, Sérgio Conceição puser a carta no correio e disser a toda a gente o que vai acontecer, se se confirmarem as suspeitas de separação entre ele e o FC Porto, o tribunal marcado pela velocidade julgadora das redes sociais só vai querer saber uma coisa: quem é que quis separar-se? Foi André Villas-Boas que decidiu prescindir de Sérgio Conceição, treinador que, conforme o próprio fez questão de lembrar ontem, conquistou onze títulos em sete anos, pegando na equipa limitada pelo fair-play financeiro e interrompendo um período de quase cinco anos sem troféus, da Supertaça de 2013 à Liga de 2018? Ou foi Sérgio Conceição que escolheu deixar o clube por se sentir muito ligado à gestão anterior, a de Pinto da Costa, a quem deu um respeitoso beijo na testa no dia em que ele apresentou a recandidatura a mais um mandato, dessa forma ligando o seu futuro ao do presidente agora deposto e que ele terá salvo nas últimas eleições? A essa dúvida, só me apetece perguntar, como em qualquer divórcio em que se discute quem é que acabou com o amor: mas isso importa? É que o mais provável é que ambos tenham percebido que haverá mais futuro sem que estejam agarrados um ao outro numa coexistência que, mais até do que a de Queiroz com Santana Lopes, aparenta ter tudo para correr mal.
Ao que tudo indica gorada a hipótese de entrar no Milan, que vai decidir-se por Paulo Fonseca para substituir Stefano Pioli, Conceição terá compreendido que, chegados ao final de Maio e já fechadas várias portas, se calhar não tem na Europa que conta o mercado que lhe fizeram crer que teria, mas não lhe fará mal ficar à espera de uma oportunidade, que aparece sempre a quem apresenta o currículo dele. E, sobretudo, perspicaz como é, terá sentido os ventos de mudança no FC Porto e entenderá que não ganha nada em se agarrar ao contrato que fez com Pinto da Costa, transformando-se num verdadeiro “sitting duck”, no alvo mais fácil a abater, caso resolva sujeitar-se ao desgaste que um novo recomeço pode implicar. Porque a verdade é esta: se se olha para Sporting, Benfica e SC Braga, para os plantéis, para a situação financeira e para as soluções de criação de mais-valias no mercado no imediato, vê-se uma fotografia melhor do que a de há dez anos. No FC Porto acontece o inverso: o plantel é menos apetrechado e as contas estão bem mais difíceis. Conceição fez um trabalho fenomenal a ganhar com equipas de nível inferior – a de 2018 e a de 2020, por exemplo – e faltará apurar se apanhou por tabela de uma gestão menos competente ou se também ajudou a conduzir à fotografia atual, desprezando talentos que não se enquadravam na sua forma de ver o jogo. De qualquer modo, é natural que, por um lado, se mostre fatigado e entenda que já merece algo diferente, da mesma forma que há-de ter percebido que do outro lado se quer um perfil em rotura com tudo o que ele representa.
E esta é a grande incógnita do futuro imediato. Que FC Porto quer André Villas-Boas? Ainda há dias, um de vós, no meu servidor de Discord, me perguntava quando é que eu achava que o Benfica se tinha tornado o maior clube português – no sentido de ser o clube que tem mais adeptos. Respondi que creio que terá sido na década de 60 do século passado, carregado pelas duas vitórias na Taça dos Campeões Europeus. E a pergunta faz-se a si mesma: então porque é que, tendo ganho duas Taças dos Campeões, mas também duas Ligas Europa e duas Taças Intercontinentais nos últimos 40 anos, mais do que o Benfica no auge europeu, o FC Porto não é o clube português com mais adeptos? No FC Porto tradicional dir-vos-ão que a culpa é da comunicação social de Lisboa e não vou dizer que isso não é um fator, porque infelizmente é, mas a comunicação social tradicional, seja em Lisboa ou em Nova Iorque, não causa maiorias: segue-as em busca de audiência. Aquilo que André Villas-Boas já parece ter entendido – e há uma série de pequenas medidas nesse sentido, a começar numa campanha eleitoral sempre feita pela positiva – é que mais adeptos significam mais receita, mais financiamento, mais quotização, mais merchandising, mais bilhética. Mais possibilidades de sucesso, portanto.
Para lá chegar, o FC Porto precisa de um corte epistemológico com o paradigma nutrido por Pinto da Costa e Pedroto em torno da ideia de combate ao centralismo. O “contra tudo e contra todos” tem um problema: é que coloca o “tudo” e o “todos” do outro lado e por isso limita o crescimento. Concorde-se ou não com essa ideia, com os níveis de conflitualidade que ela trouxe ao nosso futebol – não há revoluções sem vítimas... – ela há-de ter sido boa em 1982, porque levou o FC Porto a superar barreiras importantes, como a passagem do Douro ou a entrada nas instituições do poder do futebol, porque conduziu a títulos que o clube não ganhava. Mas o “contra tudo e contra todos” é curto para os dias de hoje e já devia até ter sido substituído pelo “com tudo e com todos” num ciclo ganhador. No portismo de linha dura haverá quem apresente esta eventual mudança de agulha como uma capitulação semelhante à de 1980, quando Américo de Sá afastou Pinto da Costa e Pedroto – que voltaram dois anos depois com poderes reforçados... –, mas o que as eleições disseram é que 80 por cento dos sócios se reviram num FC Porto mais moderno, capaz de abraçar um futuro mais global. A questão Conceição tem de ser enquadrada neste tema, a ponto de se perceber se ele é o homem ideal para liderar a equipa nesta parte da viagem. Porque já se sabe que se um não quer, dois não dançam, mas o facto de dois não quererem não significa que não haja baile na mesma.