Ouvir a bola
Sem surpresas, Rui Costa confirmou que vai manter Schmidt. O treinador não esteve bem, mas está longe de ser o único culpado de 2023/24. E o presidente não convenceu ao tentar identificar o problema.
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Rui Costa confirmou ontem, na entrevista que dá sempre no final de cada época, na BTV, que vai continuar com Roger Schmidt à frente da equipa do Benfica. Acho que faz bem, ainda que para o justificar tenha dado algumas razões erradas. Acho que o fez mal, que é provável que com um pouco mais de habilidade na gestão das intervenções dos dois ao longo do ano se tivesse evitado o caos em que agora o presidente se queixa que os benfiquistas querem tornar a época do clube. Fundamentalmente, acho que manter Schmidt não vai resolver o problema mais relevante do futebol do Benfica, da mesma forma que demiti-lo também não curaria o clube da maleita que o afeta, que passa por pôr sempre o mercado à frente do futebol e, por isso, por tomar decisões em função dessa prioridade, a pensar mais no CFO da SAD do que treinador principal. A Rui Costa falta agora esta parte da equação: tem de ouvir mais a bola e menos o que dela se diz.
O que está aqui em causa não é a necessidade de o Benfica ser um clube vendedor, como o são todos os clubes de topo em Portugal. São-no porque, em gestão corrente, no nosso país, o futebol dá prejuízo que depois é preciso compensar e porque os próprios jogadores com mais qualidades um dia quererão subir de patamar e jogar os campeonatos a sério, onde se paga (mais) a sério. Isto não é negociável e, fica já esclarecido, não acho que o caminho passe pelo desprezo das mais-valias financeiras que dá o mercado de transferências, pelo abandono desta vida feita à custa das margens conseguidas com deteção e venda de talentos. O que está aqui em causa começa por ser essa necessidade de estar sempre a lembrar isso às pessoas como se elas tivessem cinco anos – ainda que, de facto, algumas por vezes pareçam tê-los. E, depois, fundamentalmente, é que se tomem todas as decisões em função da atenção que elas podem vir a tirar dos mercados. Rui Costa não conseguiu (ou não quis...) alongar-se acerca do que correu mal no apetrechamento deste plantel de 2023/24, mas a mim o que me parece é que o que correu mal foi essa necessidade permanente de estar a comprar o passe da “next big thing” do futebol mundial, do craque mais bem visto nos fóruns secretos de olheiros, aos quais só acedem os verdadeiramente conhecedores, craques do Football Manager com um clube para gerir, porque se suspeita que um dia ele pode vir a dar 100 milhões, em vez de apostar em jogadores que façam sentido no plano atual e na cabeça do treinador.
A este respeito, Rui Costa disse duas coisas. Ainda que nunca explicando até que plano chegou a operação – se foi só uma referência, se ele já estava no grupo dos observados frequentes ou se houve mesmo conversas – disse, por exemplo, que o Benfica não apostou em Gyökeres por ainda ter Gonçalo Ramos. E isto não faz sentido por duas razões. Primeiro porque qualquer planeamento mais cuidado lhe diria que Ramos seria inevitavelmente dos próximos a sair – e o Benfica precisava dessa venda, de resto. Uma decisão a pensar na equipa e não no mercado recomendaria a operação. E depois porque essa economia de meios não impediu o Benfica de pagar quantias elevadas por Marcos Leonardo, Prestianni ou Schjelderup, os tais craques do futuro por quem o mercado suspira mas que ainda não tiveram real impacto na equipa. Sem saber até que ponto chegou o dossier Gyökeres, atrevo-me a dizer que o sueco não é o alvo típico do Benfica, porque não é um jogador de quem os mercados gostem: aos 25 anos não tinha um minuto de I Divisão e muito por isso dificilmente chegará a valer os 100 milhões da cláusula de rescisão. Quem gosta de Gyökeres é a bola, a tal bola que o Benfica tem de ouvir mais, em vez de continuar a meter as fichas todas no elevador de mercados em que a parceria Vieira-Mendes transformou a SAD a partir de 2015. Foi essa política que pagou a possibilidade que o clube tem hoje de fazer estas contratações mais vistosas? É verdade. Mas se calhar esta era a altura em que Rui Costa carregava no botão para sair, ficando num andar fixe, de onde se vê a bola e de onde não se deixa arrastar pela vertigem das negociações presentes, futuras, reais e sonhadas.
A outra coisa que Rui Costa disse foi até um pouco contraditória, algo como “este ano correu mal mas no ano passado correu bem”. Isto em relação a mercado, como é evidente, que no que respeita aos resultados estamos entendidos: não foi bom, mas só há a sensação de que foi assim tão mau por causa da expectativa de que viesse a ser épico, que o clube contribuiu para criar, porque isso também se refletia no plano das receitas. E a questão é que é preciso perceber aquilo que correu bem e por que razão correu bem, para depois se analisar o que correu mal e por que razão correu mal. Rui Costa optou por valorizar o papel de Schmidt nas promoções de António Silva e João Neves, alegando que se não fosse o alemão talvez eles estivessem ainda “a caminho de um treino da equipa B”. Tenho muita dificuldade para pensar nestes cenários hipotéticos e acho que a qualidade acaba sempre por aparecer, seja em que condições for. Mas ainda que a hiper-valorização de Enzo Fernández se tenha devido muito a fatores como a aposta de Lionel Scaloni nele após a derrota da Argentina com a Arábia Saudita, no Mundial, ou a intervenção facilitadora de Jorge Mendes, a convencer o Chelsea a subir a parada, vejo muito mais mérito do treinador na forma como o encaixou nas suas ideias do que na tal subida dos miúdos à equipa principal. Ou na transformação de Aursnes de um médio-centro apenas regular que ele era no Feyenoord na terminação nervosa que leva cérebro a qualquer zona do campo em que ele esteja. Se a forma como trabalhou Enzo, Aursnes ou até Rafa, que se tornou outro jogador quando começou a jogar por dentro – fá-lo-ia se tivesse vindo Götze, que recusou o convite? – são créditos a favor de Schmidt, o modo como nunca soube utilizar Jurasek ou Kökçü, conjugar a linha de frente com Di María, Rafa e Neres e aproveitar as qualidades de Arthur Cabral são dívidas que o treinador partilha com o scouting e com quem coordena toda a operação, Rui Pedro Brás.
Para contrariar a tese que diz que as contratações foram desadequadas à ideia de jogo de Roger Schmidt, diz Rui Costa que no PSV Eindhoven o alemão jogava de forma diferente. E tem razão. O início de organização era igual, mas os comportamentos na frente eram outros. E a verdade é que não foi campeão. Nem no PSV em 2021, nem no PSV em 2022, nem agora no Benfica em 2024. E se o que se fez em 2023 é que resulta, então o que há a fazer é simples. É ouvir a bola e repetir.
PS – Sou crítico das “entrevistas” dadas aos meios dos clubes, porque por mais honestos que sejam os profissionais que as fazem é normal que acabem por se sentir condicionados. Acho, porém, que a alternativa ontem encontrada pela BTV para contrariar este problema acaba por ser pior ainda. Foram convidados 12 jornalistas, de 12 órgãos de comunicação diferentes, para colocar duas perguntas cada um ao presidente do Benfica. O que era uma entrevista tornou-se uma conferência de imprensa, com todos os problemas das conferências de imprensa, em que os jornalistas têm um número limitado de hipóteses de perguntar. Se só tens um tiro – ou neste caso dois, vamos lá... – não vais gastá-lo a esmiuçar um tema mal explicado, a explorar uma contradição aparente. Segues em frente. É por isso que as conferências de imprensa estão a transformar-se cada vez mais no alibi dos protagonistas, que podem sempre alegar que até estiveram disponíveis, e que quem sai mal visto delas são sempre os jornalistas. E foi por isso também que muita gente saiu ontem da “entrevista” de Rui Costa a achar que não se explorou os temas até ao tutano, que ficou tudo assim meio pela rama. Tanto uma entrevista como uma conferência de imprensa têm de ter limites, mas são de tempo e não de perguntas. Tanto numa como na outra devia ser exercido o direito da contra-pergunta. Nas conferências de imprensa já sabíamos que ele estava abolido. Nas entrevistas isso é uma novidade.