A personalização do João
Golos de Cancelo e Félix devolveram o Barça aos oitavos-de-final da Champions, três anos depois. Talento, eles têm. Tem-lhes faltado personalizá-lo, como fazia Garrincha aos seus Joões.
Toda a gente que gosta de futebol sabe que Mané Garrincha, provavelmente o mais genial extremo da história do jogo, chamava “João” a todos os defesas que apanhava pela frente – e o facto, que aprendi em criança num qualquer Manual do Zé Carioca, passou à história como mais uma das irresponsabilidades do extenso cardápio do Anjo das Pernas Tortas. A questão é que esta mania não se devia apenas ao desconhecimento, normal numa altura em que não havia relatórios em vídeo dos opositores, ou a um sentimento de desprezo em relação aos que eram geralmente incapazes de lhe parar os dribles, sempre feitos para o lado direito e ao mesmo tempo sempre irresistíveis. Aquela era a forma de Garrincha honrar o defesa duro que apanhara seus primeiros tempos, em Pau Grande, antes de vestir a camisa sete do Botafogo e da seleção do Brasil, um tal João Berruga que lhe infernizava os treinos. A ver a forma como os dois Joões do FC Barcelona, o Cancelo e o Félix, foram os melhores da sua equipa e fizeram até os golos da vitória contra o FC Porto, que não mascarou uma preocupante e indisfarçável desinspiração coletiva mas garantiu o primeiro apuramento culé para os oitavos-de-final da Liga dos Campeões desde 2020, recordei a história dos Joões de Garrincha e a forma como, mais do que despersonalização do opositor direto, havia nela a necessidade de dar uma cara, um nome, a quem tinha a missão de o travar. De o personalizar. E esta luta contra o ostracismo, no caso o próprio, tem sido em grande parte a luta de Cancelo e Félix nos anos mais recentes de carreira, na missão de juntarem um palmarés à sua indiscutível qualidade. Félix anda desde 2019, há mais tempo do que o Barça, portanto, à procura de confirmar o camião de euros que o Atlético Madrid pagou por ele e começa a ver escassearem as justificações para o adiamento do seu talento. Era Simeone que lhe cortava as vazas, era Fernando Santos que não criava em seu redor um ambiente suficientemente ofensivo, era a obsessão dos colegas de seleção com o jogo mais direto e a serventia a Cristiano Ronaldo, era o Chelsea em crise de valores, agora é um Barça também ele longe dos tempos de glória... Nos quatro anos desde que saiu da Luz, Félix ganhou uma Liga Espanhola, mas fê-lo na sombra de gente como Suárez, sendo mais vezes suplente utilizado do que titular na equipa do Atlético. E esqueceu-se de uma coisa que aprendera às suas custas quando carregou o Benfica de Bruno Lage na recuperação que lhe deu a Liga de 2019: que são sempre os grandes jogadores que fazem as grandes equipas e não o inverso. Quanto a Cancelo, não lhe faltam as medalhas – ainda na época passada levou para casa mais três, de vencedor da Premier League, da Bundesliga e da Liga dos Campeões. Ao todo, já foi seis vezes campeão nacional em quatro países diferentes. Com Espanha pode fazer cinco, quatro dos quais nas Big Five, mas continuam sem se entender as razões que levaram Pep Guardiola a abdicar do potencial daquele que pode ser um dos três ou quatro melhores laterais do Mundo – e ele ainda ontem o demonstrou, com uma exibição exemplar, um golo, uma assistência e constância na forma como se tornou a única via de saída competente da zona de pressão portista. Foram questões táticas, de personalidade? Seja o que for, tanto Félix como Cancelo precisam desta oportunidade em Barcelona para personalizarem as carreiras, para darem ao nome João um significado mais relevante do que o que lhe foi conferido pelo defesa que Garrincha, às vezes, não conseguia superar.
E no entanto ela move-se. A preparação estratégica do jogo de ontem foi exemplar por parte de Sérgio Conceição. Tal como referi no Flash com o comentário à partida, a subida de Varela para uma zona próxima dos dois avançados no momento de início de organização defensiva foi o suficiente para bloquear a saída de bola do Barça durante toda a primeira parte, forçando os catalães a abusar do jogo mais direto e deixando-os desconfortáveis face a uma equipa de muito maior agonismo, com mais capacidade para se impor nos duelos. Acontece que os jogos repetem a máxima de Galileu e são geralmente mais vivos do que o papagaio morto no sketch dos Monty Python. “Não está morto, olhe. Mexeu-se”, dizia John Cleese enquanto abanava a gaiola onde a ave jazia inerte. Xavi Hernández abanou a gaiola, começou a forçar a saída pelas laterais em vez de cair na armadilha portista e o FC Porto demorou a adaptar-se. É possível que Conceição tenha retardado as substituições por temer que alguns jogadores que levara a jogo condicionados acabassem por claudicar, mas foi muito na incapacidade para reagirem ao que o desafio lhes pedia que os dragões foram batidos ontem em Montjuic.
A saga continua. Podemos estar contra ou a favor da decisão tomada por Szymon Marciniak, que aos 90+6’ acedeu às indicações do VAR e acabou por punir com grande penalidade uma bola na mão de Livramento, permitindo a Mbappé fazer o golo que empatou (1-1) o jogo com o Newcastle United e impediu a queda do Paris Saint-Germain da Champions, a uma jornada do fim. Eu achei uma tolice, que a bola ressaltou do corpo do jogador e o braço estava numa posição natural. Mas há uma série de coisas que são bem mais indiscutíveis do que essa decisão limite da equipa de arbitragem. É indiscutível que, com um xG de 3,66 até ao penalti (acabou com 4,54) o PSG não merecia sair derrotado. É indiscutível que, com apenas seis passes completos na última meia-hora de jogo, o Newcastle United não merecia ganhar. E é indiscutível que há uma agenda por trás dos media britânicos, que nunca puseram em causa decisões dos árbitros até à corrente saga contra o VAR. E se para as primeiras duas questões até há uma explicação – é futebol... – a terceira já obedece a desígnios mais insondáveis e que prefiro nem explorar para não me desiludir.
A guerra com a matemática. SC Braga e Benfica terão hoje uma guerra com a matemática, nos jogos com um Union Berlim em crise e um Inter Milão relativamente desinteressado no desfecho da noite, pois já está apurado. Mas há muito mais nos confrontos desta ronda do que essa necessidade que o Benfica tem de fazer melhor do que o RB Salzburgo em San Sebastian para ficar a depender apenas de si próprio no acesso à Liga Europa ou que o SC Braga tem de vencer os alemães – e de esperar que o SSC Nápoles não ganhe em Madrid – para ir no último dia lutar por uma vaga nos oitavos-de-final com os italianos. Há no jogo do SC Braga a necessidade de mostrar que está a crescer no plano da solidez, que vai muito além do rendimento dos centrais. E há no jogo do Benfica a necessidade de mostrar articulação coletiva que arrume de vez com a ideia de que tudo o que a equipa conseguiu depois daqueles primeiros seis meses com Schmidt foi fruto de proezas individuais.