A multiplicação dos titulares
Os três pontos de Famalicão, o Sporting deve-os, em grande parte, à capacidade que foi desenvolvendo ao longo da época para fazer crescer o plantel sem ir ao mercado. E para fazer de todos um.
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A vitória do Sporting, ontem, em Famalicão, a aumentar a distância para o Benfica no topo da tabela para sete pontos e a reduzir a necessidade de pontuar a mais nove em cinco jogos – eventualmente até apenas oito, dados os 15 golos que tem de avanço –, grita aos ouvidos dos que ainda não entenderam como é que Rúben Amorim aumentou o plantel sem recorrer ao mercado. Passaram oito meses desde o início da época e o Sporting não tem um onze-base, algo que poderia ser visto como sintoma de indecisão da parte do treinador mas na verdade é sinal de que o líder da Liga tem 18 “titulares”, um grupo nivelado que lhe permite resistir à quebra de cada um ou às ausências que ultimamente se têm repetido, em função das folhas disciplinares mais carregadas. Ontem, por exemplo, jogadores como Bragança, Quaresma ou Trincão estiveram ao lado de Coates ou Hjulmand entre os melhores, quando no Inverno terá havido quem questionasse a sua utilidade. E isso, sim, é trabalho de treinador – tanto como a clareza de ideias que o leva a querer determinado perfil de jogador e apenas aquele perfil de jogador, é dessa capacidade de esticar o grupo que os leões sentirão falta no dia em que Rúben Amorim sair de Alvalade.
Quando falei, acima, em 18 titulares, não mandei um número ao calhas. O Sporting utilizou em pelo menos 30 por cento dos seus onzes iniciais exatamente 18 jogadores: os guarda-redes Adán e Israel, os centrais Inácio, Diomande, Coates, Matheus Reis e Quaresma, os alas Nuno Santos, Esgaio e Geny Catamo, os médios Hjulmand, Morita e Bragança e os atacantes Gyökeres, Pedro Gonçalves, Trincão, Edwards e Paulinho. Todos fizeram pelo menos 15 jogos de início. Normal? No Benfica, com mais dois jogos – e por isso mais necessidade de rodar – o lote dos que foram titulares em 30 por cento dos jogos baixa para 15. E no FC Porto já são apenas 13. É esta capacidade para mudar de protagonistas que permite ao Sporting modificar-se de jogo para jogo, de acordo com o enfoque estratégico, e metamorfosear-se para se sentir, como dizia Amorim, “mais cómodo” ante o adversário. Não restam hoje dúvidas de que foi a dimensão física de Jhonder Cadiz, o avançado com a segunda maior percentagem de duelos aéreos ganhos nesta Liga, apenas atrás do menos rodado Zé Luís (Farense), a conduzir à ausência de Coates na terça-feira, em Barcelos, por exemplo. E resultou: o uruguaio ganhou as quatro bolas que disputou por alto com os adversários, três delas face ao venezuelano, que ainda no fim-de-semana tinha marcado ao FC Porto. Da mesma forma, antevendo já o jogo com o Vitória SC, no domingo, é normal que a capacidade de Jota Silva para explorar o espaço na profundidade leve à chamada de um jogador mais rápido para a direita, seja ele Quaresma ou Saint Juste.
O que marca a identidade deste Sporting é, porém, a sua capacidade para fazer estes ajustes estratégicos mantendo uma constância tática sempre alheia às alterações. Há 18 titulares – e provavelmente só as lesões de Saint Juste impedem que haja 19... –, mas a exploração das particularidades únicas que cada um traz à equipa não afeta em nada os processos coletivos. O crescimento de Bragança é disso um excelente exemplo. Quando a época começou, o médio vinha de um ano de paragem e era visto sobretudo como um jogador criativo, capaz de dar à posse um novo substrato através das trajetórias que imaginava e transportava para o seu pé esquerdo. Oito meses passados, manteve essas caraterísticas, mas somou-lhes a capacidade de trabalhar sem bola que nunca se lhe tinha visto e que permite que tanto possa aparecer em vez de Hjulmand como de Morita. Como disse ontem Amorim, Bragança “voltou de um [rotura de ligamento] cruzado melhor jogador” e isso, mais uma vez, prova que o jogador fez a sua parte, na assimilação de processos e na capacidade para os incorporar, mas também que estes processos são hoje para a equipa tão claros que fica relativamente fácil pô-los em prática. Porque o Sporting joga sempre igual e a dúvida para os adversários é acerca de onde e quando vai fazê-lo. Se mete o um-para-um atrás, com Catamo, ou à frente, com Trincão ou Edwards. Se usa um central mais forte no corpo-a-corpo, como Coates, ou mais veloz, como Quaresma. Se sai à esquerda pelo passe progressivo de Inácio para Nuno Santos ou Gyökeres ou pela condução de Matheus Reis, pedindo mais intervenção do atacante desse lado para as ligações em apoio.
A questão é que as variáveis são reconhecidas mas são tantas que dificultam o encaixe. E não há melhor prova disso do que o momento de Gyökeres, que hoje completa um mês sem um golo pelo Sporting. O sueco, maior figura do campeonato até à interrupção para os estágios das seleções em Março, leva cinco jogos seguidos sem um golo, precisamente desde o hat-trick ao Boavista que antecedeu a sua convocatória para a sua equipa nacional. Desde então, seja porque perdeu ritmo – Amorim já disse mais do que uma vez que ele precisa de jogar a uma cadência elevada – ou porque os adversários começaram a entender melhor o futebol dele, acabaram os golos de Gyökeres, os sprints demolidores pelas faixas laterais. O treinador já desdramatizou o facto, porque ele continua a ser útil – e ainda ontem foi da rapidez dele a ganhar uma dividida a De Haas que nasceu o golo da vitória. O próprio parece começar a saber aceitar de cara alegre o facto de não estar a marcar, algo espelhado no facto não se lhe terem visto ontem as reações de frustração que marcaram, por exemplo, a noite de Barcelos, a meio da semana. E a equipa encontrou a forma de superar este apagão momentâneo do seu jogador mais decisivo, por exemplo com uma maior preponderância na finalização de Trincão e Pedro Gonçalves, dois jogadores que falharam a presença nesse estágio das seleções por lesão mas que entretanto já voltaram, permitindo a Amorim manter a rotação.
O “sobrecarregado” Gyökeres, de quem a dada altura se dizia que o Sporting dependia em excesso, seria apenas o sétimo mais utilizado se transportássemos os seus números para o Benfica, mesmo que lhes somássemos 180 minutos para compensar o facto de os leões terem menos dois jogos realizados (48 a 50). Apesar do fogo de artifício que se tem seguido às últimas vitórias, o Sporting ainda não é campeão, mas eu diria que já está acima dos 90 por cento de hipóteses de vir a sê-lo. Nunca uma equipa desperdiçou uma vantagem tão grande a tão pouca distância do final da prova. E se o for, com um plantel que no papel era mais curto, pelo menos, do que o do Benfica, será porque Amorim soube esticar o grupo e criar titulares quase em geração espontânea, fomentando a sua união – que, no entanto, é preciso dizê-lo, não seria tão forte sem as vitórias. O abraço prolongado de Saint Juste a Quaresma, ontem, ao intervalo, depois de saber que era o companheiro quem ia entrar e não ele, mostra que há grupo. Na criação deste há um impacto enorme de um título iminente, mas também há muito da liderança de um treinador que sempre protegeu mas não deixou cair quem estava mal, não desconfiou de quem não partia à frente e não fez a equipa depender do rendimento de um só homem.
O que Rúben Amorim fez foi de muitos um. Ou, como se diz em latim, “E pluribuns unum”. E se aos sportinguistas incomodar o facto de este ser o lema presente no emblema do Benfica, podem sempre lembrar que ele também está na criação dos Estados Unidos da América.