A lenda do medo cénico
O monstro nasceu na década de 80, num empréstimo de García Márquez a Jorge Valdano que as bancadas do Bernabéu foram sabendo alimentar. O Real Madrid são onze jogadores e uma multidão por trás.

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Hoje vamos de Gabriel García Márquez a Joselu, passando por Jorge Jesus e Antoñete, com o auxílio de Jorge Valdano. O conceito de “medo cénico”, que o escritor colombiano criou para abordar o terror que tinha do público sempre que era forçado a dar uma palestra, foi adaptado ao futebol pelo então avançado argentino do Real Madrid a propósito das goleadas épicas que o clube foi conseguindo no Santiago Bernabéu em duas edições seguidas da Taça UEFA, as de 1985 e 1986, e teve mais uma manifestação ontem, quando Joselu marcou dois golos nos seus primeiros três toques na bola. Fê-lo entre os minutos 88 – “otchencha y ocho”, como diria Jesus – e 90+1, dessa forma apurando a equipa espanhola para mais uma final da Champions. Parece uma fatalidade, uma certeza absolutamente ridícula e quase definida em algoritmo da prova, um estado de torpor ao qual nem a equipa de arbitragem comandada pelo polaco Szymon Marciniak escapou, mas é algo que levou anos a criar. E é, hoje, indiscutivelmente, uma das principais valências do Real Madrid, a ponto de extravasar já em muito as bancadas do Bernabéu.
Valdano teve o mérito de trazer a ideia para o palco numa altura em que o Real Madrid vivia os anos mais frouxos da história gloriosa que construiu desde que ali chegara Di Stefano, na década de 50. Depois de ter conquistado seis edições em onze, o clube já não ganhava a Taça dos Campeões Europeus há duas décadas, desde 1966 – e apesar de ter ganho mais oito depois disso, ainda esteve sem a erguer até 1998. Foram 32 anos de seca e foi precisamente a meio desse período, ao fim de umas inéditas seis temporadas sem ser sequer campeão de Espanha, que Valdano foi buscar García Márquez e lhe juntou uma conversa que tivera com Antoñete. “Não me mete medo o touro. O que me dá medo é o público”, contava-lhe o famoso toureiro. Foi esse medo do público que aquele Real Madrid começou a instigar nos adversários que o visitavam. Aquela era uma equipa pouco mais do que mediana, que vivia na sombra da Real Sociedad de Arconada, Zamora e López Ufarte, do Athletic Bilbau de Zubizarreta, Dani, Goicoechea e Sarabia e até do FC Barcelona de Schuster, Carrasco e Archibald. Por isso mesmo era débil como visitante e saía frequentemente derrotado fora do seu ambiente. O Real foi batido em nove das 12 saídas a caminho do sucesso nas edições da Taça UEFA de 1985 e 1986: pelo Wacker Innsbruck (2-0), pelo NK Rijeka (3-1), pelo Anderlecht (3-0), pelo Inter Milão (2-0 num ano e 3-1 no outro), pelo AEK Atenas (1-0), pelo Borussia Mönchengladbach (5-1), pelo Neuchatel Xamax (2-0) e pelo FC Colónia (2-0). Em casa, no entanto, obtinha os resultados suficientes para levar a melhor.
A lenda nasceu em Dezembro de 1985, num golo de Santillana ao Borussia Moenchegladbach, a fazer ao minuto 90 o 4-0 que valia a qualificação para os quartos-de-final da segunda Taça UEFA. Recorda hoje Valdano que, para fazer crescer o monstro, aquela equipa do Real Madrid até aquecia nos balneários, de forma a que a entrada em campo fosse mais ribombante no ato de libertar pressão da panela que era o público e a fazê-lo o mais próximo possível do início do jogo. O efeito, porém, ia-se prolongando até ao final, altura em que a crença passava de dentro para fora e de fora para dentro do campo, numa partilha inigualável. Sentiu isso na pele o Sporting de Jesus, na Liga dos Campeões de 2016/17: esteve na frente no Bernabéu até ao minuto 88, mas depois cedeu a um livre de Cristiano Ronaldo e a um cabeceamento de Morata e ainda perdeu por 2-1. A Champions de 2022 foi o último grande exemplo do efeito dos cinco minutos à Madrid. O Paris Saint-Germain perdeu por 3-1, de virada, no Bernabéu, com um hat-trick de Benzema e dois golos de rajada, aos minutos 76 e 78. O Chelsea esteve a ganhar lá por 3-0, ameaçando virar ali a eliminatória depois de perder por 3-1 em casa, mas foi forçado a prolongamento por um golo de Rodrygo perto do final e na meia-hora extra viu Benzema carimbar o apuramento branco. O Manchester City, que já batera os merengues no Ettihad por 4-3, vencia por 1-0 aos 89’ no Bernabéu, mas caiu fulminado pelo choque elétrico que foram o bis de Rodrygo, aos 90’ e 90+1’, complementado por um terceiro golo de Benzema nos descontos.
Benzema já não está e a opção de Florentino e Ancelotti, perdido Kane precisamente para o Bayern e enquanto esperam pela chegada de Mbappé, recaiu em Joselu, um veterano de 34 anos que chegou emprestado pelo Espanyol e que até aqui só tinha ganho uma Liga, fazendo um jogo no Real Madrid dos 100 pontos, em 2012. Depois disso passou por muitos clubes, do Hoffenheim ao Stoke City, até voltar a Espanha para gozar o fim de carreira no Alavés. Não se esperava que ele viesse a resolver fosse o que fosse, razão pela qual o próprio Ancelotti se viu forçado a inovar, primeiro com o 4x4x2 em losango, depois com um “rombo” que entregava a largura toda aos laterais e aos dois avançados, nada mais nada menos do que Vinícius Júnior e Rodrygo, que na verdade são extremos adaptados. O modelo, que ainda ontem passou por enormes dificuldades contra um dos piores Bayern dos últimos anos, chegou para garantir a Liga espanhola, com 13 pontos de avanço do Girona FC a quatro jornadas do fim, bem como para ganhar a Supertaça na final com o FC Barcelona. E já valeu a presença em mais uma final da Liga dos Campeões, contra um Borussia Dortmund que com os madridistas partilha a noção de que tem mais público do que equipa. Se o futebol é dado ao medo cénico, não haverá palco como o de Wembley para o instigar. A final de 1 de Junho jogar-se-á, por isso, muito para lá das quatro linhas, não tanto no apoio como no respeito que impõe aquele público.
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Pena que a arbitragem não tenha estado à altura do jogo. É por lances daqueles que eu defendo que o árbitro nunca deve apitar antes do golo, por mais claro que pareça. Tirando esse episódio, foi um reviravolta inacreditável do Real Madrid, pouco habitual de se ver contra alemães.