O filósofo contraditório
Menotti foi uma das personagens mais marcantes nos últimos 50 anos do futebol mundial. E, mesmo tendo sido campeão do Mundo, é-o mais pelo muito que disse do que pelo pouco que ganhou.
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Chamavam-lhe “filósofo” para o diminuir, para enfatizar o seu afastamento das coisas práticas, mas ele gostava, porque sabia que essa era a realidade e era nisso, no poder que mostrava para influenciar as ideias, que tinha orgulho. Cesar Luís Menotti, que morreu no domingo, com 85 anos, é uma das figuras mais reconhecidas na história do futebol argentino e mundial e não o é pelo que ganhou, seja como jogador ou, depois, como treinador. É-o sobretudo pelo que ia dizendo enquanto ganhava e enquanto perdia, também, que foi isso que lhe aconteceu sempre desde que, em 1983, cinco anos depois de ter sido campeão mundial, deixou o FC Barcelona para entrar nos últimos 24 anos de carreira de técnico sem um único troféu. O nome dele tornou-se, a partir dessa altura, sinónimo de um estilo, de um legado, de uma forma de estar que ele tornou oficial quando fundou uma escola de treinadores. Da sua mente, do seu lado da barricada na guerra filosófica que manteve com Carlos Bilardo, o selecionador que lhe sucedeu e que foi campeão do Mundo em 1986, beberam seguidores tão relevantes como Francisco Maturana, Juan Manuel Lillo ou Pep Guardiola – e ganharam aqueles que souberam adaptar o “menottismo”, a forma de ver o futebol que ele próprio dizia que era “um disparate como metáfora futebolística”, às dificuldades da vida terrena, dificilmente compatível com o improviso e a liberdade total defendidos até à insanidade pelo seu maior guru, o próprio Menotti.
Menotti era em si um poço de contradições – e a maior de todas foi-lhe sempre apontada pela sua nemesis, que era Bilardo. “Menotti dizia-se comunista mas depois andou aos abraços com os militares da junta”, disse El Narigón, em alusão ao facto de o seu antecessor ter sido o selecionador argentino no Mundial de 1978, durante a ditadura do ignóbil general Jorge Rafael Videla. Essa não é a única contradição na vida do treinador com cabelo à Beattle, que começou a fumar no dia em que, era ele ainda adolescente, viu o pai morrer com um cancro de pulmão. Além daquilo a que o próprio chamou a “recuperação da relação afetiva com o povo”, o que o rosarino mais deu à seleção argentina foi organização, coisa que não havia lá. Potenciou as seleções da província, incutiu compromisso nos jogadores, que não eram doidos pela ideia de representar uma equipa na qual se dizia que se entrava mal e se saía pior, e fez o mesmo com os presidentes de clubes, que muitas vezes não os libertavam para os estágios. Identificou os selecionáveis e estabeleceu um calendário para ir vê-los jogar. Foi nesta sistematização que não é nada menottista, neste conjunto de ações mais próprias de um Bilardo, que começou o caminho que levou ao título no Mundial de 1978. “Menotti estimula a espontaneidade, a resolução criativa dos questões que o futebol nos propõe. Bilardo é a antítese, pois sabe que há muitas situações que vão colocar-se e oferece-nos respostas pré-estabelecidas”, disse um dia Marcelo Bielsa, que mantinha uma boa relação com os dois. “O meu problema com Bilardo vai muito para lá do futebol. Cada um tem uma forma muito diferente de estar na sociedade”, explicou uma vez Menotti.