A ideia e a prática no Benfica
A goleada do Benfica nasceu da adequação entre o futebol idealizado por Schmidt e os jogadores que pôs em campo. Têm de jogar estes? Não. Mas para jogarem outros o treinador deve ceder na ideia.
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A entrada no onze de pernas frescas e, sobretudo, de mentes mais predispostas ao tipo de jogo que está na cabeça de Roger Schmidt foi fundamental para a forma como o Benfica goleou ontem o FC Vizela. Porque não é só uma questão de cansaço ou de rotação nem muito menos de falta de unhas do adversário para a guitarra que o seu treinador o quis fazer tocar – que é real, mas não foi fulcral. O Benfica marcou seis golos ontem sobretudo porque foi coerente entre a ideia e a prática, entre o futebol que o seu treinador idealiza e os jogadores que pôs em campo para a corporizarem. Quer isso dizer que têm de jogar estes e não os outros? Não necessariamente. Até porque muitos dos que ontem foram poupados funcionam na ideia de Schmidt – Aursnes e António Silva são exemplos comprovados pela época passada. E outros são jogadores de um talento que será sempre uma pena ignorar. Terá o Benfica de sacrificar Neres ou Di María para ter um segundo extremo competente no condicionamento alto dos adversários? Terá o Benfica de deixar de lado Arthur Cabral porque Tengstedt é mais rápido e eficaz na pressão? Se calhar não. Mas para os ter em campo terá de jogar de forma diferente. E quando digo jogar de forma diferente não estou a dizer que tem de trocar o 4x2x3x1 por um 4x3x3, um 4x4x2 ou um 3x4x3. Digo que tem de pensar o jogo de uma forma diferente – e isso significa treinar de forma diferente e preparar-se mais para os momentos do jogo em que menos investe atualmente, que são os de ataque organizado. Ontem, dos seis golos que fez, o Benfica só marcou um em ataque organizado, o único em que foi fundamental a coragem porventura excessiva do adversário, mas também a sua própria argúcia na abertura e exploração do espaço ante um bloco subido. Foi o quarto, que começa na chamada de Trubin a atrair a pressão do FC Vizela e depois na saída vertical de João Neves, a pedir a aceleração de Rafa antes da finalização de Neres. Todos os outros – com exceção do segundo, que saiu de uma bola parada – podiam ser mostrados em aulas de Gegenpressing. Pressão e transição. O primeiro nasce na ação tempestuosa mas não eficaz de Rafa em cima do guarda-redes e depois no ataque de Tiago Gouveia à bola que Jota quis fazer sair em condições. O terceiro num contra-ataque de Rafa. O quinto numa recuperação de bola de Tengstedt, que o dinamarquês aproveitou para isolar a velocidade de Rafa. E o sexto numa aceleração de Neres – é verdade... e aos 88’ – a correr meio-campo com a bola antes de servir Marcos Leonardo. Mas a história do jogo é tanto a desses momentos como é a dos 15 minutos iniciais, em que o Benfica teve bola, esteve instalado no meio-campo ofensivo e, tal como durante períodos excessivamente alargados do jogo com o Toulouse FC, por exemplo, não teve uma finalização para o bloco de notas. É que nessa altura tinha os jogadores adequados para a pressão mas não os que servem o jogo com bola a que estava a ser forçado. A conclusão a tirar dos últimos jogos do Benfica é que Schmidt não tem de abdicar do talento em favor do condicionamento pressionante, mas para o fazer jogar tem de mudar a ideia – e sobretudo o treino. Porque se a ideia é o Gegenpressing e o treino incide – e aqui estou a adivinhar, eu sei... – nos momentos de pressão e transição, a coisa funciona bem com jogadores competentes nesses momentos e mal se o adversário se recusa a sair para jogar e lhe rouba as possibilidades de ataque rápido e de contra-ataque. O sucesso da acumulação de talento ofensivo no onze do Benfica não depende da presença de meia dúzia de jogadores façanhudos que façam todo o trabalho defensivo. Essa divisão liminar de tarefas não existe no futebol há décadas. Depende, isso sim, da adequação da ideia à prática. Sejam elas quais forem.
Então e o Taremi? A vitória do FC Porto contra o Estrela da Amadora foi tão tranquila que teria dado para Sérgio Conceição fazer corresponder as ações às palavras em defesa de Taremi que proferiu na conferência de imprensa de antecipação do jogo. O iraniano tem provas dadas e está, de acordo com o treinador, comprometido com os objetivos da equipa, mas sobra essa questão de a articulação do onze ter começado a funcionar melhor a partir do momento em que ele saiu para a seleção e a equipa encontrou as dinâmicas certas entre largura, apoio e profundidade, às quais não é estranha a presença simultânea dos quatro artistas da pose com que os dragões passaram a celebrar os golos: Francisco Conceição, Evanilson, Pepê e Galeno. Foi a primeira vez que o FC Porto mostrou capacidade para superar a saída de Otávio, porque foi quando assimilou Nico e Varela a meio-campo e deixou de querer fazer de Pepê o sucessor do jogador transferido no Verão para a Arábia Saudita. Como é que se encaixa Taremi nesta lógica? Esse é o grande motivo de curiosidade para o que sobra na época dos dragões. E se Conceição não o pôs a jogar terá sido sobretudo por uma razão: ainda não quer que ninguém sequer suspeite do que lhe vai na cabeça a esse respeito.
A maldição Kane. Há coisas que são tão perfeitas que quase parece um desperdício não as mencionar. É o caso da já chamada “maldição-Kane”, o capitão da seleção inglesa e um dos melhores pontas-de-lança do Mundo, que aos 30 anos trocou o Tottenham pelo Bayern, onze vezes seguidas campeão alemão antes da sua chegada, para finalmente conseguir ganhar um troféu coletivo. Pois o Bayern espalhou-se e, depois das derrotas em Leverkusen e em Roma, ontem perdeu também com o VfL Bochum, deixando alargar para oito pontos a distância que o separa da equipa que Xabi Alonso elevou ao topo da Bundesliga. Parece claro que este será o ano em que se interrompe a longa série de títulos nacionais da equipa bávara, como parece igualmente evidente que, mesmo que reverta o 0-1 contra a Lazio em casa, na segunda mão dos oitavos-de-final, o Bayern não tem o nível necessário para superar mais duas eliminatórias e ganhar a final da Champions. Como perdeu a Supertaça para o RB Leipzig e já está fora da Taça da Alemanha, o que perdura é a maldição Kane. Mas é justo que se diga que Kane será dos menos culpados da situação. O problema é o modelo de clube, a começar num grupo de antigos jogadores que não perceberam que, apesar de se terem convertido em dirigentes, já não são eles o centro das atenções e continuam a desdobrar-se em declarações e em casos frequentes de uma necessidade urgente de mostrar que ainda são influentes, assegurando os maiores talentos, os melhores treinadores, tudo o que pode ser esperado deles. O Bayern é um clube tão especial que, ao contrário do que acontece na generalidade dos locais, ali resulta melhor ter um treinador apagado, uma espécie de funcionário do economato que se limite a tomar nota das existências. É por isso que um clube que teve Guardiola ou Nagelsmann tem de olhar para Jupp Heynckes para encontrar um exemplo perfeito de treinador de sucesso.
A série de Hojlund. Rasmus Hojlund já tinha batido contra o Aston Villa, no fim-de-semana passado, o seu recorde de golos numa época. Ontem, com mais dois na depois sofrida vitória do Manchester United em Luton, tornou-se o mais jovem de sempre a marcar em seis jogos seguidos da Premier League, aos 21 anos e 14 dias. Aquele que durante boa parte da época vinha sendo apontado como equívoco principal no planeamento da temporada do United depressa se converteu no seu salvador. Sim, os 75 milhões de euros que o United pagou por ele à Atalanta continuam a ser demasiado. Sim, continua a ser um risco tonto preparar uma época só com um ponta-de-lança, se ele tem 20 anos e apenas um ano de experiência na Serie A italiana. Sim, talvez até tivessem razão os que defendiam que no mercado de Janeiro o United devia ter apontado a um jogador experiente para enquadrar o jovem dinamarquês, como fez na época passada com Weghorst, que chegou por empréstimo e ajudou na campanha que levou a equipa a qualificar-se para a Champions. Mas que o futuro da posição é Rasmus Hojlund já não há dúvidas.