A história do futebol em 120 minutos
O futebol mudou em 150 anos, mas há princípios que continuam atuais. Como ter os melhores jogadores perto da baliza. Foi por aí que se explicou a entrada de Portugal na Final Four da Liga das Nações.

Palavras: 1649. Tempo de leitura: 9 minutos (áudio no meu Telegram)
Quando inventaram o futebol, meteram as balizas no meio da linha de fundo. Como os jogos se ganham com golos, a prática levou a que se convencionasse que os jogadores dotados de maior capacidade de definição fossem atacantes e que os que se destacassem pelo arreganho e pelo rigor da marcação fossem defesas. Depois, a dimensão física do chamado futebolista total levou a que tudo isto se tornasse mais opaco, da mesma forma que, por permitir vaivéns constantes, banalizou as multiestruturas em que todos defendem e todos atacam, as equipas que defendem com linha de cinco ou seis atrás e depois se transformam para atacar com linha de cinco ou seis na frente também. O maior preenchimento das zonas de definição foi então o responsável pela devolução de uma certa justiça poética ao jogo, aproximando os melhores jogadores das balizas: os extremos, esses portentos de técnica e criatividade, que cresceram em comunhão com o público – também porque jogavam junto à linha –, passaram a atuar por dentro, para estarem mais perto do golo, e de ‘pé trocado’, para poderem chutar em vez de cruzar. Esta é a história do futebol, mas podia ser a história do Portugal-Dinamarca, ganho no minuto em que Roberto Martínez foi forçado a ceder às constatações de que os melhores jogadores para a seleção ter nas zonas de definição não são os defesas laterais transformados em segundos atacantes mas sim os criativos que ele tinha encostados às linhas e de que o avançado-centro se chama assim porque tem de estar lá, no centro do ataque. O selecionador já o fez muito perto do final da partida, mas ainda a tempo de salvar uma eliminatória que até aí esteve sempre mal encaminhada.
Hoje podemos aqui discutir se Trincão é melhor do que Conceição ou que o ontem poupado Pedro Neto, se Diogo Jota faz mais sentido do que Rafael Leão ou até que quem devia jogar ali era João Félix ou – ato máximo de heresia para uns e conclusão óbvia para outros – que na frente tem de estar Gonçalo Ramos e não Cristiano Ronaldo. Tudo isso é debatível, mas o que mudou o jogo de ontem foi a cedência à ortodoxia e a abdicação das chinesices que marcam o futebol da seleção desde que começou a meter um dos laterais – ultimamente até os dois – no meio do ataque, afastando os verdadeiros atacantes da baliza. A seleção melhorou muito em relação ao jogo de Copenhaga – e pudera, tão mau este tinha sido. Melhorou na definição da saída de jogo, ligando melhor a primeira e a segunda fase de construção. Seja porque lhes deram mais e melhores linhas de passe à frente, porque os dinamarqueses foram menos intensos na pressão ou porque a entrada de Gonçalo Inácio no onze favorece esta parte do jogo português, os dois centrais e o guarda-redes somados perderam menos passes de risco nos 120 minutos de Alvalade (cinco) do que nos 90 de Copenhaga (doze). Isso conduziu a que a equipa chegasse com mais qualidade ao último terço e, ao mesmo tempo, o aumento da agressividade e do rigor na ocupação dos espaços no momento defensivo diminuiu muito a capacidade para o adversário chegar à nossa área – foram 41 ações na área no Parken, 24 (em 120 minutos) ontem. Portugal teve ontem o comando do jogo, mas esteve na mesma à beira da eliminação, sobretudo porque depois lhe faltava a capacidade para ser criativo quando se aproximava de Schmeichel.
Martínez teve, em tempos, o mérito de trazer o melhor Rafael Leão para a seleção – e é pena que o jogador entretanto tenha caído tanto também no clube. Nessa descoberta esteve um detalhe estratégico, que foi permitir a Leão que começasse os ataques bem aberto, junto à linha, o que naturalmente levava a que o lateral-esquerdo fizesse movimentos diagonais para dentro do campo. Originalmente, o defesa-esquerdo ia fazer de segundo médio no 3x2x5 que a seleção usa para atacar – um dos médios baixava para o meio dos centrais na construção a três, outro emparelhava com o lateral-esquerdo na dupla de meio-campo, o lateral direito era responsável pela largura no seu corredor e quem surgia nos meios-espaços à volta do ponta-de-lança eram o extremo-direito (Bernardo) e o médio mais criativo (Bruno Fernandes). Estas eram alterações que deixavam os jogadores mais confortáveis – Leão, por exemplo, precisava de vir embalado da linha para se impor nas diagonais para a área. Contudo, à medida que foi prolongando o trabalho na seleção, Martínez foi radicalizando esta peculiaridade. Nesta Liga das Nações, Bernardo nunca jogou à direita. Foi sempre um dos médios. E, além de Leão, fez de Pedro Neto (ou de Francisco Conceição) um híbrido entre extremo bem aberto na direita e quinto elemento da linha defensiva nos momentos sem bola. Portugal passou a atacar com um dos médios entre os centrais, os outros dois médios na dupla à frente deste trio, os dois extremos bem abertos e os dois defesas-laterais nos meios-espaços próximos do ponta-de-lança. Passámos de ter Bernardo Silva e Bruno Fernandes ali, em zonas de definição no último terço, para lá termos Diogo Dalot e Nuno Mendes. Sou só eu que acho que isto deixa a equipa com menos capacidade no ataque à baliza?
Ontem, mesmo assim, Portugal fez dois golos com esta ideia. O primeiro foi um autogolo, mas antes a equipa já teria podido marcar se Ronaldo não tivesse falhado o penalti. O segundo foi bem construído, resultando de uma chegada à frente de Bruno Fernandes, para um remate ao poste, depois aproveitado por Ronaldo em recarga. Mas a seleção nacional também sofreu dois golos, o primeiro num inacreditável erro de posicionamento num canto – ninguém com Kristensen ou a cobrir o segundo poste – e o segundo numa perda de bola comprometedora de Ruben Dias. Portugal estava à beira da eliminação e ninguém podia dizer que ela fosse injusta, pois a seleção até tinha sido um pouco melhor do que a Dinamarca na segunda mão, mas antes tinha sido bastante pior na primeira, onde só uma noite superlativa de Diogo Costa impediu que o segundo jogo se tornasse irrelevante. Foi aí que, depois de ter resolvido dar 28 minutos a Diogo Jota, por troca com um Leão que nunca se mostrou ao melhor nível, Martínez decidiu dar nove minutos – uma eternidade – a Trincão, abdicando de Conceição. Além disso, a partir daí, por ordem dele ou iniciativa dos jogadores, o ponta-de-lança fixou-se mais na área – Ronaldo andara sempre muito por todo o campo – e, sobretudo, os laterais passaram a dar largura e os extremos apareceram por dentro. O trio de ataque inicial – Conceição, Ronaldo e Leão – teve menos ações na área (dez) do que aquele que acabou a partida: Trincão, Gonçalo Ramos e Jota jogaram, no total, menos 88 minutos, mas chegaram às 12 ações na área. Não é que Portugal fosse mais ofensivo nesse período – aliás, nos últimos 29 minutos até esteve pela primeira vez em situação de gerir a vantagem na eliminatória. Só que quem mais surgiu na área no plano inicial foram... os laterais. Dalot apareceu mais vezes na área (4-3) do que Conceição, Nuno Mendes idem (3-0) face a Leão.
No final, Martínez teve razão, porque ganhou. Se podia ter ganho mais cedo? Creio que sim, mas aí estaremos sempre no domínio da opinião. O que está aqui em causa não é, como disse o selecionador ao jornalista que lhe perguntou se “era preciso sofrer tanto”, que quem não gosta de sofrer não pode acompanhar a seleção. “Você sofreu? Eu desfrutei!”, afirmou. É claro que a incerteza faz o espetáculo, mas não conheço nenhum treinador que não prefira ganhar sem palpitações. O que está aqui em causa são outras coisas, são as coisas que nos levam a trocar a tranquilidade pelo sobressalto. É, por um lado, a manutenção de um plano que não tem feito crescer esta equipa. Portugal não joga hoje mais do que jogava há dois anos, quando Martínez chegou. E, por mais que o selecionador nos lembre que nestes dois anos só perdeu dois jogos oficiais sem ser nos penaltis, isso é preocupante. Fernando Santos, por exemplo, só perdeu uma vez em competição nos primeiros dois anos e precisou de quase quatro para somar a segunda derrota, sendo campeão da Europa de caminho. Os jogadores são bons e anormal seria que perdessem mais vezes. Depois, aquilo que está em causa é a forma sempre tardia como o treinador abdica da ideia inicial, por mais que se torne evidente que ela não funciona. Ontem, nove minutos chegaram a Trincão para garantir o prolongamento e a meia-hora suplementar bastou a Gonçalo Ramos para provar que, mesmo que permaneça como suplente de Ronaldo, tem obrigatoriamente de jogar mais tempo.
No final, das bancadas vieram “olés” que nos diminuem. O público estava em delírio, o que é bom mas nem sempre é bom conselheiro quando se trata de tomar decisões. Na conferência de imprensa, a atitude mais confrontacional de Martínez face aos jornalistas prova que está alinhado com o capitão, pois o próprio Ronaldo falara na véspera dos “que não querem que Portugal ganhe”. A tática é conhecida. Trata-se de unir o grupo, sacrificando o mensageiro. Já houve campeões do Mundo assim – a Itália de 1982, por exemplo, fez todo o Mundial em “silenzio stampa”. O que temo é que isso não chegue se em campo não começarmos a tomar as decisões certas. E eu, que sou e serei sempre a favor da estabilidade e da manutenção dos treinadores, tenho algum receio de que estejamos quase a chegar ao ponto sem retorno para essa matéria.