A finta do guarda-redes
A informação é poder, como disse Francis Bacon. Só que não chega. Pickford tinha uma boa base para saber para onde ia o penalti de Maddison, mas antes de lho defender teve de o fintar.
A finta é um truque dos atacantes. Dizem até que dos extremos, que quem joga junto à linha e por isso mais perto do público se torna mais atreito a este gesto que é de comunhão com o adepto cujo favorecimento se pretende obter. E, no entanto, sobretudo desde as “spaghetti legs” inventadas por Grobbelaar para desconcentrar os adversários e ganhar o desempate por penaltis da final da Taça dos Campeões Europeus de 1984, a finta passou a ser atributo dos guarda-redes também. O efeito da dança do zimbabueano nessa final de Roma foi apenas de surpresa, ele fê-la para mexer com a cabeça dos italianos, para os pôr a pensar: “o que é que este maluco está a fazer?” antes de chutarem. As coisas, nestes 40 anos, porém, evoluíram bastante. Na final de Roma, antes dos penaltis, tudo o que Joe Fagan, treinador do Liverpool FC, teve para dizer a Grobbelaar foi: “Não te preocupes, rapaz. Ninguém vai culpar-te se eles marcarem os cinco penaltis. Faz o teu melhor! Hás-de pensar em alguma coisa”. E o guarda-redes lembrou-se de se pôr a dançar, pernas trôpegas, bamboleantes, em cima da linha, para desconcentrar os batedores. Ontem, numa ocasião bastante menos gloriosa mas igualmente importante, quando Jordan Pickford, guarda-redes do Everton, enfrentou James Maddison, craque do Leicester City, da marca dos onze metros, tinha muito mais bases para defender. O Leicester City e o Everton estão firmemente empenhados em fugir à descida de divisão, num final de época que vai apertar bastante para aqueles lados, e os da casa, que já ganhavam por 2-1, antes do último lance da primeira parte – que era aquele penalti – ainda tentaram o seu número de prestidigitação. Youri Tielemans guardou a bola na mão até aos instantes finais, para dar a entender a Pickford que seria ele a bater. Mas a dada altura cedeu no bluff e deu a bola a Maddison. A última coisa que Pickford fez antes de se colocar entre os postes foi beber um gole de água da sua garrafa – uma garrafa onde pôde verificar que Maddison bate 60 por cento dos penaltis para o meio da baliza. Era uma dica importante, mas provavelmente não ia chegar, porque se ele ficasse estático o mais certo seria o adversário escolher um canto. E foi aí que Pickford fez a finta. Quando Maddison começou a correr para a bola, ele deu um passo para a direita, simulando que ia deixar-se cair para aquele lado. O momento, digno de um qualquer duelo no OK Corral, há-de ter sido o suficiente para que Maddison se sentisse mais dentro da sua zona de conforto e acabasse mesmo por chutar para o meio. Imediatamente antes do remate, porém, Pickford reverteu a marcha e voltou ao meio da baliza, onde deteve o penalti. O jogo foi para intervalo nos 2-1 e, mesmo a perder, Pickford celebrou como se ali tivesse ganho o jogo e a manutenção na Premier League. Não conseguiu o primeiro objetivo e está longe de garantir o segundo, mas o empate que o Everton ainda foi buscar ontem (2-2) em Leicester pode vir a revelar-se decisivo nas contas finais. E se assim for a metade azul de Liverpool há-de contar por muitos anos a história da mensagem na garrafa, mas também a da finta do guarda-redes.
O gatilho de Jota. Não é preciso vir a Portugal para vermos comportamentos deploráveis, como pudemos perceber pela forma como Jürgen Klopp foi festejar o golo que valeu a vitória do Liverpool FC sobre o Tottenham (4-3) na cara do quarto árbitro, como se estivesse a vencer ao mesmo tempo o adversário e a equipa de arbitragem, fazendo até uma rotura muscular na coxa no processo. Mas em defesa de Klopp... Não. Vou reformular, que a atitude de Klopp não tem defesa. Como atenuante para a loucura de Klopp podem apresentar-se as circunstâncias do jogo. O Liverpool chegou aos 3-0 bem cedo na partida, fazendo pairar sobre Anfield o espectro de uma reposição dos 6-1 que o Tottenham apanhou recentemente em Newcastle, mas os Spurs recompuseram-se e, já nos descontos, Richarlison fez o 3-3 que ia deixar tudo na mesma na corrida aos lugares europeus. Só que aí apareceu Diogo Jota. A forma como, em frente ao Kop, com o período de compensação a esgotar-se, o atacante português recebeu orientado e bateu Forster com um tiro cruzado de pé direito que entrou pela única nesga por onde podia entrar só rivalizou com a calma que aparentou a festejar, travando a corrida e, sem deixar transparecer qualquer emoção, repetiu o mesmo gesto maquinal com as palmas da mão em direção ao relvado. “Calma”, parecia dizer aos adeptos e, já agora, ao treinador. Não está fácil a tarefa de Roberto Martínez para os jogos de Junho.
Super-suplente. Há tipos que têm tal efeito nos jogos quando entram que tenho dificuldades em entender como jogam tão pouco tempo. No Benfica, tem sido esse o caso de Musa, um avançado que, neste momento, seja por estar mais fresco do que Gonçalo Ramos ou porque a equipa tem tido mais dificuldades em ganhar ascendente em zonas interiores de forma a ativar o titular como ele mais gosta, tem mudado os jogos sempre que entra – e entra geralmente tarde. O croata jogou um total de 58 minutos dos últimos 270, correspondentes aos jogos do Benfica com o Inter, o Estoril e o Gil Vicente, mas foi com ele em campo que a equipa marcou quatro dos seis golos que obteve nessas partidas. Em Barcelos, a entrada dele foi decisiva e deu sentido às alterações que pareciam vir em contra-ciclo feitas por Schmidt. Musa dá poder de choque na área, mas deu também jogo entrelinhas e movimentações de apoio de que, francamente, não parecia capaz no seu futebol tendencialmente mais direto. Com o jogo empatado a zero e um adversário confortável nas suas zonas baixas, o treinador alemão sacrificou a criatividade e teria tido dificuldades para justificar as saídas de Neres e João Mário se não tivesse acabado por ganhar. Quer isso dizer que teve razão ao escolher a simplicidade de processos, o jogo mais objetivo de Gonçalo Guedes ou de Aursnes, que subiu para a zona de ataque, e depois de Musa? Naquela noite, teve. E isso foi o suficiente.