A ética do futebol
A ética e a moral do futebol são muito diferentes dos valores que regem a sociedade em geral. Mas há coisas que servem em qualquer área: a honestidade e a gratidão. Sem que se confundam com servidão.
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Há, no mundo do futebol, um estranho sentimento de pertença muitas vezes confundido com fidelidade ou gratidão. É, por exemplo, o sentimento que banaliza a ideia segundo a qual um treinador que seja despedido antes do termo do seu contrato não deve exigir receber os valores que lhe são devidos pelos meses em que não vai trabalhar e a convicção de que um adjunto tem de pedir autorização ao chefe de equipa para se assumir como técnico principal. Mas, por muito que isso possa parecer estranho a quem nasceu e viveu sempre dentro do futebol, a realidade empresarial em que o jogo passou a navegar nestas últimas décadas transporta-o para um patamar totalmente diferente. Uma coisa é ser-se correto, grato e honesto – e isso defendo e defenderei sempre, porque se trata de valores inegociáveis em sociedade. Outra, bastante diferente, é ser-se servil. E isso já não tem cabimento no futebol ou em qualquer outra área.
Para usar uma expressão grata a Sérgio Conceição, o que está em causa neste momento no FC Porto é muito fácil de ler mas ao mesmo tempo difícil de desmontar. Por razões que já aqui abordei, não é do interesse de André Villas-Boas manter o contrato assinado por Pinto da Costa com Sérgio Conceição nas vésperas das eleições. E não é só por esta renovação ter sido abusiva – que o foi – ou por não querer prolongar a ligação a um treinador que tinha acabado a apoiar tacitamente a outra lista, mas sobretudo por uma questão de estratégia, por querer dar uma guinada no clube e no que ele significa para a sua massa adepta. Conceição é um tipo generoso como poucos, creio mesmo que terá renovado por gratidão a Pinto da Costa e não por convicção ou interesse material, pois duvido mesmo que quisesse ficar. Mas há uma coisa que não lhe entra numa personalidade magoada por uma vida que teve os seus focos de dureza e privação antes de ser marcada pela abastança: é a rejeição, é ver o outro dizer-lhe que não quer que ele fique. E, pior, ser quase o último a saber que no clube preferem manter aquele que ele acha que devia ser o seu fiel escudeiro e que devia estar-lhe tão grato como ele está a Pinto da Costa. Um treinador-adjunto que, como se diz no futebol, sem ele “não seria ninguém”.
Esta é a forma de pensar que se banalizou no futebol e é uma das grandes responsáveis pela cristalização do jogo na nossa divisão de elite. Os treinadores vão sendo despedidos daqui, não fazem por receber aquilo a que teriam direito, porque se o fizerem ficam desde logo a saber que já não entram ali, onde outro acaba de ser despedido e de abdicar também ele de receber aquilo a que teria direito, quem sabe se para depois entrar aqui. As cadeiras vão indo de um ocupante para outro, num círculo reduzido de onde ninguém sai – a não ser por causa de um estranho limite de idade – e onde é cada vez mais complicado entrar, porque cada chefe de equipa leva sempre os seus adjuntos com ele. Não me revejo nesta realidade. Acho mesmo que ela é perniciosa para o futebol, porque o limita tanto como a falta de vagas nos cursos que permitam a obtenção do nível UEFA Pro e tentam manter de fora gente como Luís Freire ou até Rúben Amorim. Há uma altura para a emancipação e, se Vítor Bruno achar que chegou a hora dele, só tem de ser honesto e correto com o chefe de equipa e comunicar-lho frontalmente, manifestando-lhe o que sente sobre a parceria que com ele foi mantendo: se lhe está grato pelo que aprendeu ou, pelo contrário, ressentido por achar que a posição de subalternidade o atrasou. Não há aqui uma regra a não ser a da honestidade, da frontalidade, que deve marcar todas as relações humanas.
André Villas-Boas vai ter de vir a público esclarecer o que se passa neste imbróglio do técnico do FC Porto – e quanto mais depressa o fizer, melhor. Só vejo uma razão para ainda o não ter feito, que é o conselho dos advogados para que o não faça, de maneira a que isso não possa vir a ser aproveitado pelo outro lado para fazer valer o contrato assinado com Pinto da Costa. E aqui parece haver uma contradição na minha argumentação: “então mas não defendes que os treinadores devem receber os seus contratos até ao fim?”, dir-me-ão. Sim, defendo. Mas só em contratos moralmente legítimos, o que não é o caso de uma renovação por quatro anos feita um par de dias antes de um ato eleitoral pela lista que acabou derrotada numa tentativa desesperada de evitar o afastamento. Mais ainda, uma renovação por quatro anos onde uma das partes – Conceição – pode sair sem pagar e a outra já não tenha a capacidade de o fazer. Aquele contrato assinado entre o FC Porto de Pinto da Costa e Sérgio Conceição pode até ser legalmente válido, mas moralmente não o é. E, aliás, nenhuma das partes tinha a intenção de o cumprir. O próprio Conceição disse no rescaldo da final da Taça de Portugal que já tomara a sua decisão acerca da continuidade e que a comunicaria a André Villas-Boas nos dias que se seguiam, declarações que só podem ser entendidas como de despedida – como o foram, de resto, por parte de todos os analistas e comentadores. Só que, lá está, na cabeça de Conceição era importante ter a última palavra, ser ele a decidir sair e não ser dispensado e, pior, ser substituído pelo seu ajudante. Esta ultrapassagem pela direita de quem vai confortavelmente na faixa do meio da autoestrada mexe com qualquer um, quanto mais com a personalidade ferida de Conceição.
Não sabemos – porque isso ainda não foi esclarecido, tintim por tintim, pelos protagonistas, além das acusações de falta de caráter a sujeitos indeterminados com que temos vindo a ser brindados em múltiplas contas de Instagram – quando é que Vítor Bruno soube que a ideia de André Villas-Boas era convidá-lo para ser treinador principal do FC Porto. Não sabemos sequer se ele já o sabe hoje, com certeza absoluta. Sabemos que após o jogo com o Boavista, da penúltima jornada do campeonato, a duas semanas do fim da temporada, o adjunto terá comunicado a Sérgio Conceição que pretendia emancipar-se como treinador principal. Falou-se de um convite de Antero Henrique e de uma equipa do Qatar, em cuja Liga o homem que Pinto da Costa dizia ser uma espécie de eminência parda da candidatura de Villas-Boas exerce o cargo de diretor, mas falta perceber várias coisas acerca desse momento. Foi mesmo Antero Henrique a abordar Vítor Bruno? Este antigo dirigente portista tem legitimidade para convidar alguém para ser treinador do FC Porto? Tê-lo-á abordado, em conluio com Villas-Boas, só para perceber se ele estaria confortável a trabalhar a solo, para depois de resolver as coisas com Conceição fazer o upgrade no convite? Antero foi só mesmo a cortina de fumo para esconder uma realidade bem mais complexa, de um convite feito pela equipa de Villas-Boas para ficar com o lugar de Conceição? E, o mais importante de tudo, ainda que só na relação entre os dois, Vítor Bruno foi honesto com Conceição, isto é, disse-lhe tudo o que lhe tinham dito a ele?
Se Vítor Bruno não foi honesto com Conceição, esteve mal. Se Villas-Boas não foi honesto com Vítor Bruno e não o está a ser com Conceição, esteve mal. Mas daqui não é legítimo extrair a conclusão de que o presidente do FC Porto não pode convidar o adjunto para substituir Sérgio Conceição. Ou, muito menos, que este, para aceitar esse convite, tem de pedir autorização. Isso não é honestidade nem gratidão. É servidão. E o tempo da servidão já acabou há muito.
Se tudo isto for verdade (lembrar que a imprensa passou de Gasperini para Vítor Bruno e a participação de Antero Henrique é estranha), Sérgio Conceição deveria estar satisfeito com a promoção do seu adjunto e desejar boa sorte, nem deveria estar tão surpreso por estar a ser substituído, quando nem ele nunca foi claro sobre se ficava ou saía e quando sabe as circunstâncias em que assinou o contrato.
De facto a ideia de servidão e gratidão confundem-se em demasia no futebol, assim como a falta de ética nas relações laborais têm forte presença no futebol. Desde a dança de cadeiras dos treinadores. Aos jogadores que assinam contratos que os empresários mandam assinar, achando que carreira é jogar futebol. Jogadores que assinam clausulas de rescisão mas forçam a saída, se recusam a treinar e desaparecem, porque entendem que têm o direito de rasgar o contrato quando lhes apetece. Aos clubes que despedem treinadores sem pagar a indemnização ou que encostam os jogadores que estão no seu direito de não renovar contrato.
Deixo duas questões: Terá Vítor Bruno condições de treinar o Porto com Francisco Conceição no plantel, dada a sua intervenção nas redes sociais? Ou por outro, terá Francisco Conceição condições de trabalhar com este treinador, caso fique? Não seria hora de se criar o sindicato do treinador de futebol para acabar de vez com o despedimento a "custo 0"?
Uma saída à medida do nível deste Senhor.