A cor da pele
O ideal do jogador de um clube só é bonito, como aqueles casamentos que chegam às bodas de diamante, mas não é disso que se faz a vida, como se percebe pelas carreiras de Nuno Santos ou João Moutinho.
Escrevi na semana passada acerca do que me parecia ser a procrastinação de Harry Kane, que estaria demasiado cómodo no Tottenham, e o jogador acabou por protagonizar uma saída relâmpago para o Bayern, cuja camisola vestiu em competição antes de muitos de vós terem sequer tido tempo para ler o texto. Não pretendi então adivinhar o que Kane iria decidir, nem é isso que está agora em causa: o que me faz recuperar o tema hoje são os comentários que na altura li, vindos daqueles de entre vós que estavam saudosos da ideia do jogador de um clube só, do jogador cuja pele é da cor da camisola que enverga. Do João Pinto da anedota, o capitão cujo coração tinha apenas uma cor: “o azul e branco”. Porque o que me parece a mim, até em virtude das notícias de hoje, das renovações de Pedro Gonçalves e Nuno Santos pelo Sporting e do eventual regresso de João Moutinho ao FC Porto, é que são os jogadores que “fazem” as suas peles, que escolhem a identidade em função das suas próprias caraterísticas ou necessidades. Também me agrada o ideal romântico do jogador de um clube só, mas há que ter a noção de que por vezes há futebolistas que nascem na cor errada ou que crescem para lá daquilo que a sua cor pode dar-lhes – tal como há aqueles, muitos mais, que nunca chegam a preencher bem as camisolas que lhes cabe envergar. A frase-feita segundo a qual “ninguém é maior do que o clube” é verdadeira em abstrato, mas não se aplica da mesma maneira a todos os casos concretos. Disse Kane em entrevista, já na Alemanha, que nunca se preocupou com isso dos títulos. “O meu objetivo sempre foi melhorar o meu futebol”, acrescentou. Mas o que é isso de melhorar o futebol? Pode melhorar-se numa equipa constantemente perdedora? A pele de Kane já não era a camisola do Tottenham há muito tempo – e só poderia continuar a sê-lo se o jogador se acomodasse ou aceitasse o destino sem procurar aquilo que a sua identidade lhe reclamava. Para Kane, sair do Tottenham foi um pouco como sair do armário, assumir o que a vida lhe gritava. Da mesma maneira que João Moutinho, que nasceu numa família de benfiquistas – o pai, Nélson, até chegou a jogar no Benfica... – e foi depois um dos mais jovens capitães da história do Sporting, assumiu o azul e branco como cor da pele quando percebeu que isso de melhorar o seu futebol não chegava e que, na altura, precisava de sair de Alvalade para ganhar campeonatos e jogar na seleção nacional. Os sportinguistas mais fanáticos nunca lhe perdoaram, mas Moutinho fez o que tinha de fazer e, hoje, quando se resigna perante o fim da carreira internacional e encara a possibilidade de voltar a Portugal, a porta que procura é a do Dragão. Tal como Nuno Santos, que entrou no FC Porto com dez anos, por lá ficou até aos 17, e foi depois campeão – jogou 18 minutos... – pelo Benfica aos 21, é hoje encarado como um dos que mais sente a camisola verde e branca do Sporting, onde entrou de maneira a aproveitar uma oportunidade que já não teria noutro local. O ideal do jogador de um clube só é bonito, como aqueles casamentos que chegam às bodas de diamante, mas não é algo a que possamos apegar-nos para medir felicidade, preenchimento ou realização. A vida é outra coisa.
Como assim, branda? A sensação geral relativa à suspensão de um jogo, 23 dias de castigo e 12.444 euros de multa, aplicados a Sérgio Conceição na sequência do deplorável espetáculo que o treinador do FC Porto montou na Supertaça, é a de que a justiça foi demasiado branda. Não concordo. E não concordo por duas razões. A primeira é que este castigo acabará por tirar Conceição do banco do FC Porto por quatro jogos – e no entanto a vertente popularucha do bitaitismo acha que duros são os alemães, que há sete anos castigaram Roger Schmidt com três jogos (mais dois com pena suspensa) e 20 mil euros de multa por se recusar a abandonar o banco num jogo do Leverkusen contra o Borussia Dortmund. A segunda, que responde aos que alegam que o caso de Schmidt, na altura, era um incidente isolado, enquanto que Sérgio Conceição acumula expulsões como medalhas de bom comportamento em defesa do clube, é que os castigos seguem o que está estipulado nos regulamentos. E se os regulamentos, feitos e aprovados pelos clubes, não prefiguram que um indivíduo que é reiteradamente expulso deve ver a moldura penal agravada a cada nova expulsão, por reincidência, o que está mal são os regulamentos. E cabe aos clubes mudá-los.
A memória antecipativa. Nasceu no movimento hipster-futebolístico uma campanha contra o aumento dos períodos de compensação no futebol, porque eles são um abuso do físico dos jogadores, da capacidade de planificação dos operadores televisivos e até do tempo do público, como se aqueles cinco ou seis minutos que estão a jogar-se a mais esta época além dos 95’ ou 96’ que já se jogavam antes fossem a raiz de todos os problemas do futebol. Não o são. Sei que ao longo de uma época inteira estes acréscimos equivalerão a mais três ou quatro jogos inteiros, mas também sei que cabe a jogadores e treinadores deitarem menos tempo de jogo ao lixo com festejos e substituições demoradas ou lesões fictícias. Sim, é evidente que os calendários estão sobrecarregados de uma maneira inaceitável e que esse problema tem vindo a aumentar gradualmente ano após ano, mas continuo à espera de ver quem se chega à frente primeiro com a iniciativa de abdicar de parte do rendimento que o excesso de jogos propicia – se a FIFA, a UEFA, os clubes ou os sindicatos de futebolistas. Tinha piada ver a FIFPro emitir um comunicado a dizer que os jogadores estão prontos a prescindir de 20 por cento dos seus rendimentos se a FIFA tirar 20 por cento ao volume do calendário que os leva a fazer 60 jogos num ano, entre clubes e seleções. Enquanto isso não acontece, as lesões graves de Courtois, Militão, De Bruyne ou Timber neste início de época já vão sendo apresentadas como resultado nefasto das novas medidas de acréscimo ao tempo de jogo. Os jogadores modernos são fisiologicamente tão evoluídos que até já vêm com músculos e ligamentos dotados de memória antecipativa: lesionam-se hoje por conta da sobrecarga que vão ter lá mais para a frente.
E vão quatro. Mesmo tendo mais jogo, o Manchester City precisou dos penaltis para bater o Sevilha FC na Supertaça Europeia. Pouco importa. Já lá vão quatro títulos seguidos, a Premier League, a FA Cup, a Liga dos Campeões e agora a Supertaça, com o olhar no quinto, que poderá ser o Mundial, caso a FIFA o realize mesmo, neste ano de transição para o novo torneio. Nesse caso, um eventual sucesso permitiria a Guardiola repetir a “manita” que ganhou com o FC Barcelona em 2009. Do desafio de ontem, em Atenas, sobra a criatividade tática dos ingleses face à abundância de opções – Gvardiol fez a estreia a titular como defesa-esquerdo, com Akanji e Aké ao meio e Rúben Dias, Stones e Laporte no banco. E mais um golo do menino Palmer, que face à lesão de De Bruyne, à saída de Mahrez e à súbita indisponibilidade de Bernardo Silva, apareceu a formar o trio de apoio a Haaland com Foden (finalmente por dentro) e Grealish. O City pode até querer gastar mais 100 milhões em Lucas Paquetá, mas a verdade é que não precisa de o fazer.