Linha de montagem
No Bessa, nascem e crescem jogadores à Boavista como cogumelos. É o meu ideal de futebol? Não. Mas é um compromisso bem melhor do que muitos quando não há meios para outras armas.
Vê-se jogar este Boavista e a sensação é mista. Por um lado, fica a certeza da falta de boas opções, da incapacidade para dar um salto qualitativo, justificada pela proibição de inscrever reforços além dos jogadores recuperados após empréstimos. Por outro, uma ideia de arrojo tático, na forma como Petit abre o campo com os seus extremos, mesmo que para o fazer tenha de recorrer ao veterano de muitas batalhas que é Salvador Agra e ao miúdo Tiago Morais, 19 anos mas já a picar o ponto na quarta edição seguida da I Liga. E, por fim, sobra a convicção de que ali há uma linha de montagem capaz de fabricar ou transformar qualquer um num futebolista à Boavista. E o que é um futebolista à Boavista? É um jogador de passada larga, intensidade nos píncaros, capaz de deixar tudo nos duelos – inclusive, por vezes, a clarividência –, abordados de pitões à frente em qualquer circunstância. Estão a ver o Musa? Já joga no Benfica há mais de um ano, mas é ainda um jogador à Boavista. E isso é ao mesmo tempo um elogio e uma crítica, porque se ele soube manter a capacidade para discutir cada lance como se a própria vida dependesse do seu desfecho, já teve tempo suficiente para subir uns degraus na pirâmide do futebol que se lhe exige. Petit, por exemplo, soube fazer essa transformação enquanto jogador. E, sendo evidente que isso não se consegue ali, que só será objetivo depois de uma eventual saída para outras realidades, haverá, sobretudo nos dias a seguir a jogos com os grandes, quem tente convencer-vos de que esta identidade aplicada aos jogadores vestidos de xadrez é péssima – se o Boavista tiver ganho às equipas deles ou perdido com os rivais – ou extraordinária – se tiver acontecido o contrário. Eu, que cresci a ouvir nos relatos da rádio que o Estádio do Bessa era um estádio à inglesa, e sempre vi isso como um elogio, a ponto de ainda hoje ser daqueles onde mais prazer me dá ver futebol, já vos disse repetidamente que gosto deste futebol assim mais britanizado. E, sobretudo, prefiro-o ao jogo dissimulado, ao antijogo que é a outra arma mais corriqueira que as equipas de menor valia costumam usar contra os grandes. O Boavista-Benfica de segunda-feira foi um grande jogo de futebol muito por causa disso, da mesma forma que o Getafe-FC Barcelona de domingo tinha sido um enorme bocejo devido não só à dureza mas sobretudo ao antijogo da equipa de José Bordalás, uma espécie de Petit espanhol. Entre as duas partes, o desafio do Coliseum Alfonso Pérez teve 115 minutos, mas em mais de uma hora esteve parado. “Se é este o produto Liga que queremos vender, para mim é uma vergonha absoluta. Isto não foi um jogo de futebol”, disse no final do empate a zero Xavi Hernández, o treinador do Barça, que tinha sido expulso durante a partida. “Ele só está a tentar justificar o facto de não ter ganho os três pontos com aquele plantel”, respondeu Bordalás, que antes anunciara a morte do tiki-taka. “Isso já passou à história”, sentenciou. No Bessa, dos 108 minutos que durou o Boavista-Benfica, jogaram-se quase 56. Não é extraordinário? Não. Mas é bem melhor.
Combinar um meio-campo. A combinação ideal para o meio-campo do FC Porto continua a ser um dos maiores mistérios por resolver da Liga portuguesa de 2023/24. A perda de Uribe, que era um jogador universal, parece colmatada com as contratações de Varela e Nico, mas não é preciso ter um doutoramento em matemática para entender que se jogam os dois mais alguém tem de sair do onze. E o jogo de Moreira de Cónegos trouxe à equação mais um nome e uma dúvida. O nome foi o de Eustáquio, bom como seis na segunda parte, quando Sérgio Conceição abdicou de Grujic – e vamos ver até que ponto Varela é um real upgrade ao sérvio ou apenas um jogador semelhante na falta de dimensão construtiva que aquele já revela. A dúvida é o enquadramento ideal de Otávio e Pepê. Todos concordamos que Pepê é um talento e que afastá-lo da frente pode ser péssimo, mas se ele lá fica, se juntamos Galeno, se somamos os dois pontas-de-lança de que a equipa precisa para ter presença na área – e a primeira parte, com Otávio como dez atrás de Taremi mostrou que isso é fundamental – então Otávio terá de baixar para a dupla de médios. A abundância nunca foi um problema por si só, mas é preciso ter em conta que mesmo num plantel de 30 ou 35 jogadores só entram onze de cada vez. E é por isso que me parece que as declarações de Conceição sobre Pepê, nas quais o treinador do FC Porto afirmou que, fosse ele selecionador brasileiro, o jogador seria o lateral direito titular do escrete, são mais do que uma tentativa de convencer o médio-ala a baixar no campo sem fazer cara feia. São a constatação de que, até pela falta de opções de qualidade atrás, ele tem de ser encaixado ali para permitir conjugar todos os que concorrem pelas vagas mais à frente.
A vantagem da inteligência. Não expliquei bem o que me fez voltar a colocar Eustáquio na equação? Pois não. É mais ou menos a mesma razão que torna Ricardo Horta incontornável em qualquer ideia de jogo que o SC Braga venha a adotar: a inteligência. A capacidade para pensar um lance, para imaginar como ele decorrerá se se fizer uma coisa ou outra, é um dos fatores que realça os grandes. Eustáquio não terá a mesma qualidade de definição do atacante bracarense, mas ao mesmo tempo o contexto em que está inserido é o de um FC Porto mais gregário, o que o leva a distinguir-se mais – e levará Nico pelo mesmo caminho, assim tenha oportunidade de o fazer. Quanto a Horta, mesmo numa equipa em que há muito mais gente a falar a sua linguagem – há o irmão André, Pizzi ou Abel Ruiz e pelo menos dois deles estarão sempre em campo –, ele destaca-se pela capacidade de antecipar soluções. Ontem, em Backa Topola, escreveu um livro de três capítulos em apenas 15 minutos a arrumar de vez com uma eliminatória que já estava muito bem encaminhada. Aos 8’, saiu da direita para aparecer ao meio, lançando onde ele devia estar Victor Gómez para a assistência a Pizzi. Aos 13’ voltou a ocupar o espaço central, mas desta vez escolheu o lado esquerdo para deixar Bruma em condições de marcar. E aos 15’ beneficiou da saída de Pizzi em movimentação de apoio, com a correspondente atração do lateral esquerdo, para se lançar onde era suposto ter estado no início, que era à direita, de onde descobriu Djaló para o 3-0. Como dizia Cruijff, “o futebol é um desporto que se joga na cabeça”.
A fuga de Neymar. A contratação de Neymar pelo Al Hilal, de Jorge Jesus, exemplifica muito bem aquilo que vai ser a Liga saudita. Não são só veteranos decadentes que vão lá parar, não senhores. Num dia bom e se quiser, se se empenhar verdadeiramente, Neymar pode encantar plateias – e não é só pela sua capacidade de artista e malabarista, pode ser também pela de competidor. Mas convém perceber por que razão – além dos 90 milhões de euros anuais que vai ganhar, como é evidente – é que Neymar acabou no Al Hilal aos 31 anos. Neymar queria ir para o FC Barcelona. O agente de Neymar, Pini Zahavi, queria pô-lo no FC Barcelona. Joan Laporta, presidente do FC Barcelona e dirigente próximo de Zahavi, queria contratá-lo. Mas o treinador do FC Barcelona, Xavi Hernández, ainda por cima pleno de força porque foi campeão na Primavera, não queria Neymar de volta, porque sabe bem que, ao longo de uma época, são mais os dias em que o brasileiro não quer e não se empenha em concretizar todo o seu potencial do que aqueles em que o faz. Neymar enquadra-se assim numa das razões fortes que levaram jogadores para a Liga saudita este ano: como não podia ter o que pretendia, que era competir ao mais alto nível num clube que lhe garantisse títulos, no clube em que ele de facto queria jogar, achou que mais valia aceitar os milhões. Perdido por um, perdido por mil. Ou por 90 milhões, neste caso. Esta foi uma razão muito parecida com a que levou Cristiano Ronaldo para o Al Nassr há nove meses, ainda que o profissionalismo do português lhe tenha permitido adiar esse momento de cruel constatação até aos 37 anos. Que os dois – e todos os que lá foram parar, seja por já terem caído do galarim ou por terem percebido que nunca iam lá chegar – vão tornar a Liga saudita mais forte, não há dúvidas. Mas não a transformam numa Liga de sonho, num plano aspiracional superior. Continua a ser uma Liga de ricochete.