A clareza de Gomes
O administrador financeiro da SAD do FC Porto foi longe demais quando afirmou que tem de vender até 30 de Junho. E a questão é a de perceber se isso foi um “faux-pas” ou uma declaração estratégica.
Há alturas em que, até por ser desnecessária, demasiada clareza pode tornar-se seriamente inconveniente. Fernando Gomes, administrador financeiro da SAD do FC Porto, puxou ontem para o lado do realismo uma tirada idealista do presidente Pinto da Costa, que na euforia da conquista da Taça de Portugal, o terceiro título da época portista, se dirigiu a Sérgio Conceição e lhe disse: “Vamos continuar juntos, a ganhar!” É claro que para o FC Porto ganhar é sempre uma hipótese séria e não tem de depender de um mercado de abundância, como se viu por exemplo em 2017/18, a primeira época de Conceição, na qual os dragões foram campeões debaixo do jugo do fair-play financeiro. Mas até por causa desse passado a presença de Sérgio Conceição se torna mais importante: poucos conseguem gerir a escassez como ele deu provas de saber fazer. Ainda assim, não vejo que necessidade tinha Fernando Gomes de ser tão claro quando, na apresentação dos resultados do empréstimo obrigacionista, assumiu que a SAD do FC Porto precisa de vender e, mais, precisa de vender “até 30 de Junho”. “A acontecer alguma coisa para equilibrar as contas – e tem de acontecer – é até 30 de Junho”, declarou. Ora isto já era uma conclusão mais ou menos segura da maior parte dos analistas, porque os resultados financeiros de 2022/23 precisam de mostrar contas no positivo, até para evitar novas intervenções da UEFA, mas uma coisa é nós acharmos isso e outra, bem diferente, é um administrador responsável vir dizê-lo com toda aquela clareza. No limite, o que Fernando Gomes fez foi diminuir o poder negocial da SAD portista no mercado, porque os potenciais compradores poderão jogar com mais uma alavancagem: a necessidade comprovada que os dragões têm de vender até determinada data. Se essa data final está a chegar e eu estou interessado num jogador do FC Porto, se do outro lado me dizem que ele só sai se eu pagar a cláusula de rescisão, a primeira coisa que eu penso é: “Está bem, abelha!” E o que faço é não subir a parada, porque sei que do outro lado há necessidade absoluta de fazer um negócio rápido, qualquer que ele seja. É evidente que, como jornalista, não posso criticar quem quer que seja por ser honesto e claro no que diz – e tudo indica que além de ser claro, Gomes terá sido absolutamente verdadeiro. Mas como analista devo questionar-me acerca das razões que o levam a dizê-lo com tanta clareza se a tal não foi forçado – não estava perante nenhuma comissão de inquérito. Foi o barulho das luzes? Difícil, quando se trata de alguém com tantos anos de experiência de vida pública. Foi um “faux-pas”, que pode acontecer a qualquer um? Ou, numa altura em que o próprio Sérgio Conceição admitiu pela primeira vez que há outras hipóteses para dar seguimento à sua carreira, foi uma declaração pensada e estratégica, no sentido de resolver de uma vez por todas algum incómodo que tenha ficado no seguimento das setas mandadas de um lado para o outro em Outubro do ano passado? Tenha sido o que for, a verdade é que o mercado do FC Porto começa aqui a complicar-se.
Dormir com o inimigo. São curiosas as reservas colocadas pelo Paris Saint-Gemain à hipótese de Todd Boehly vir a comprar uma parcela minoritária da SAD do Sporting como forma de o Chelsea se chegar à frente no negócio por Ugarte, precisamente por virem de um clube cujo dono, o QSI, comprou uma parcela minoritária da SAD do SC Braga – e não será estranho que venha a fazer circular jogadores por ali. O negócio do futebol complexifica-se e, de facto, vai sendo cada vez mais urgente impedir este tipo de ramificações, sobretudo pela possibilidade que elas dão de se completarem negócios fictícios, apenas para driblar as regulamentações. No final, o médio uruguaio vai mesmo para Paris, mas a transferência não deixa de nos colocar alguns desafios e, sobretudo, de nos dar algumas lições, na forma como as coisas estão a decorrer, por exemplo, entre o Sporting e o FC Famalicão. Curiosamente, isso sucede no dia em que Miguel Ribeiro, presidente da SAD minhota, lançou um ataque – justificadíssimo, por sinal – aos grandes, pela toxicidade que trazem ao futebol. Consciente de que estava a ser demasiado ambicioso com o negócio-Pedro Gonçalves, a SAD de Ribeiro aceitou subalternizar a sua posição tanto em Ugarte, de que cedeu mais 10 por cento ao Sporting antes da venda ao PSG, como no próprio Pote, mostrando-se disponível para vender 40 dos 50 por cento que ainda tinha. Como já tinha explicado aqui, manter 50 por cento do passe de Pote era, para o FC Famalicão, manter 50 por cento de coisa nenhuma, porque se o jogador não rendeu os 80 milhões de euros da cláusula em 2021, depois de ter carregado o Sporting às costas até ao título nacional, não vai valê-los nunca na vida – e os leões não o libertariam pela metade de uma hipotética transferência de 40 ou 50 milhões. Esta capacidade para dormir com o inimigo é uma lição de realpolitik aplicada ao mercado.
Postecoglu e o “usado seguro”. Os dois clubes que, com o Paris Saint-Germain, mais se têm demorado a decidir e por isso continuam a mexer com o mercado europeu de treinadores, o Tottenham e o SSC Nápoles, vivem conjunturas semelhantes na sua enorme diversidade. No Tottenham, a ideia que fica após Mourinho e Conte é a de que não é possível ganhar. Chegam treinadores-estrela, habituados a títulos – contabilizava hoje o Telegraph que os últimos dez contratados por Daniel Levy somam 62 troféus, mas que só um deles foi ganho no clube – e os resultados acabam sempre por desiludir. Em Nápoles, enquanto se arruma o “scudetto” de 2023 nas vitrinas, o presidente De Laurentiis procura um substituto para Luciano Spalletti, que além de não ter boa química com ele terá percebido que quando se chega ao topo de um cume não há outro caminho a não ser para baixo e por isso mesmo pediu “um ano sabático”. Como diz o provérbio, “depois de mim virá quem de mim bom fará”. Cansado de tentar a via do pedigree, o Tottenham vai apostar em Ange Postecoglou, um australiano nascido na Grécia, que acaba de ganhar o “treble” escocês pelo Celtic Glasgow, fiel ao lema de vida do Crocodile Dundee: não complica. Já em Nápoles, o favorito à sucessão ainda é Vincenzo Italiano, mas enquanto o treinador da Fiorentina anda entretido com a final da Liga Conferência, a Gazzetta dello Sport de hoje volta a lançar na corrida Rafael Benítez, que apresenta como um “usado seguro”. Adorei a expressão, porque desde que ganhou a Supertaça em Itália, precisamente pelo SSC Nápoles, em 2014, a única coisa segura em Benítez é que as coisas vão correr mal, mais cedo ou mais tarde. Há, é verdade, uma espécie de preconceito do futebol contra os treinadores mais experientes a instalar a dúvida em ambas as situações, mas nem sequer é isso que me faz torcer o nariz. O problema não é Postecoglou já ter 57 anos e Benítez ter 63. O problema é o australiano só agora chegar a um palco principal, depois de ter passado os anos dourados a tocar em festivais de província, precisamente por causa da falta de chama e de ideias próprias que o levava a simplificar demasiado o que tem alguma complexidade, e o espanhol ter sofrido há dez anos uma espécie de “burn-out”, nascido da sua propensão para ter demasiadas ideias e, dessa forma, complicar em demasia o que, apesar de tudo, é simples.
Quando um director financeiro faz uma declaração dessas nesta altura da época, quem é que precisa de inimigos? 😄