A alienação de Neres
Todos os jogadores são iguais, mas uns são mais iguais do que outros. A adaptação do clássico "Animal Farm", de George Orwell, permite descodificar a gestão de balneário de Roger Schmidt no Benfica.
Palavras: 1353. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
A gestão de um grupo de jogadores profissionais tem muito que se lhe diga, a ponto de não haver uma fórmula única e indiscutível para a fazer de forma infalível. Até os maiores magos da motivação, como era Brian Clough ou também chegou a ser o José Mourinho do FC Porto ou do Inter, tiveram momentos difíceis. Hoje em dia, só em Portugal, temos abordagens tão diferentes como a desarmante, com a qual Rúben Amorim nos engana através de sorrisos e de uma abertura que não é mais do que aparente, porque ele na maior parte das vezes só nos diz o que planeou, ou a hiper-benévola, de Roberto Martínez, a tentar convencer-nos de que está sempre tudo bem naquele mundo de malmequeres e nenúfares que é o balneário da seleção nacional. E depois há Roger Schmidt, que após o Vlachodimos-Gate com que começou a Liga passada, voltou no domingo a ser inconveniente com um jogador que lidera, no caso David Neres, que acusou com toda a naturalidade do Mundo de estar com a cabeça em Nápoles e que foi por isso que não o levou a Famalicão, onde até lhe teria dado jeito para superar a defesa local.
Acredito que a gestão que Schmidt faz dos jogadores parte de dois eixos de pensamento. Por um lado, aquela praticidade alemã, de quem acha que as coisas são para serem ditas como elas são e que se depois em Portugal temos canais de televisão que esmiúçam durante horas se ele viu o jogo de mãos nos bolsos e em silêncio, a controlar criteriosamente a saída de ar com os lábios, ou se gesticulou e gritou mais, isso já não lhe diz respeito porque na verdade não é importante. Seria capaz de empatizar com essa maneira de ver as coisas se acima dela o técnico do Benfica não colocasse a outra base da sua filosofia, que é o estabelecimento de uma hierarquia perfeitamente definida de quem lhe interessa e de quem não lhe interessa dentro de um mesmo grupo. E não é só por haver ali toda uma graduação dentro de um mesmo balneário, na qual se define que há jogadores a quem tudo é permitido e que depois há outros, menos “iguais” do que os primeiros na quinta orwelliana, que se olham para a bancada é porque se estão a ver se lá há algum emissário de um emblema capaz de os levar dali para fora. E é, além disso, por muitas vezes discordar da hierarquia do que é mais importante e do que interessa menos.
A entrar na terceira época de Benfica, Schmidt já teve a sua quota-parte de momentos difíceis de gerir – e para o caso não importa que alguns tenha sido ele a criá-los. Do primeiro, que foi o forcing de Enzo Fernández para sair para o Chelsea, em Janeiro de 2023, saiu-se muito bem, como referi aqui. Foi claro, deixou o jogador fora do desafio com o Portimonense, recuperou-o depois, para jogar com o Varzim – aquela noite em que o argentino marcou um golo, bateu no peito e apontou para o chão, a dizer que estava para ficar –, mas a prova de que ele afinal não tinha a cabeça na Luz encontra-se no facto de ter acabado mesmo por se transferir um par de semanas depois. Ainda assim, Schmidt estabeleceu então o que se julgava ser um princípio: Enzo não jogou com o Portimonense porque faltou a dois treinos, quando foi à Argentina festejar o Ano Novo, e não por causa dos rumores de transferências, que aí erguiam-se mais alto os valores de proteção do investimento. Fazia sentido – agora era preciso ser coerente. E a verdade é que com Neres as coisas já não funcionaram da mesma maneira. Não consta que o brasileiro tenha faltado a treinos, há rumores de que pode sair neste mercado, mas ainda assim ficou fora da lista de jogadores que Schmidt levou a Famalicão. “O jogador quer sair e há conversas com o novo clube. Eu preciso de jogadores totalmente comprometidos. Foi por isso que ele não esteve aqui”, explicou o alemão depois da derrota em Famalicão.
É claro que, de fora, ninguém pode garantir que, colocado perante uma proposta do Chelsea que lhe mudaria a vida e o tornaria um dos médios mais caros da história do futebol, Enzo não tenha mantido o foco no trabalho que agora faltará a Neres perante a eventualidade de uma saída pela porta pequena que será sempre a sua transferência para Nápoles. Mas, sem mais dados, o que parece mudar entre um e o outro caso é simplesmente a posição de ambos na hierarquia que Schmidt estabeleceu dentro do plantel. E para o entender há que recuar a 14 de Agosto do ano passado, faz amanhã precisamente um ano, e à derrota do Benfica no Bessa (3-2), na jornada de abertura da Liga em que ia defender o título de campeão. Foi um jogo marcado pela expulsão de Musa, ao minuto 51, com o Benfica a ganhar por 1-0. Para recompor a equipa, Schmidt trocou Di María por mais um defesa-central, Morato. O craque argentino, que estava a fazer o primeiro jogo na Liga depois de um regresso apoteótico à Luz e de ter marcado na conquista da Supertaça, não gostou de sair e acertou um vistoso pontapé numa garrafa de água. Devo dizer que não é coisa que me choque e que acho que se faz sempre um barulho excessivo com as reações dos jogadores quando são substituídos. Mas já lá volto. Logo a seguir, o Boavista empatou. No final, a derrota levou Schmidt a acusar Vlachodimos, o guarda-redes que tinha sido titular nos 34 jogos do título ganho um par de meses antes. “Não foi o melhor dia dele. Podia ter feito melhor. O Boavista só teve três oportunidades e fez três golos”, disse o alemão.
Tinha razão, Schmidt? Tinha. Tinha uma motivação extra para o dizer? Também: o Benfica ia contratar Trubin e a chegada do ucraniano era um upgrade para a equipa na baliza. Devia ter dito o que disse? Não. E não porque desde logo lançou para o balneário a ideia de que poria o pé na garganta de qualquer jogador que ele visse numa posição de vulnerabilidade ou que não estivesse no topo da hierarquia que ele estabelecera para a equipa. Mas que já não o faria com os outros. Por exemplo, Di María. Dias depois, em entrevista a uma rádio do seu país, o argentino foi claro acerca da reação à saída de campo no Bessa. “O treinador sabe que eu não gosto de ser substituído”, disse. E assim se fez até final da época. Aos 35 anos, Di María, um indiscutível acrescento à qualidade do futebol atacante do Benfica, passou a ser gerido com mil cuidados. Não com a sua condição física mas com a sua satisfação. Foi sendo espremido até não ter lá mais nada, o que por um lado o inibia de mostrar a plenitude do que tinha para dar e por outro levava à alienação de outros talentos que com ele concorriam e que percebiam que não lhes restava senão apanhar as migalhas que sobravam do tal uso excessivo e permanente do argentino.
O caso Neres começou aí, não foi com a abordagem do Nápoles. E continuou no dia em que Di María resolveu abdicar do sonho de acabar a carreira no Rosario Central, o seu clube de menino, por causa das ameaças de que foi alvo. Foi nessa altura que Neres entendeu que não lhe valia de nada ficar, porque o papel que lhe estaria reservado na gestão de grupo feita por Schmidt seria provavelmente igual ao que desempenhou na época passada. Se ele quer sair, se João Neves quis sair, como Schmidt disse, ou se chorou com Rui Costa quando os dois se aperceberam de que a transferência era inevitável, como contou o jogador, isso, francamente, é folclore.
Que razão tinha Schmidt quando a Vlachodimos? O que Schmidt fez ali, como agora, foi cobardemente afastar as responsabilidade queimando um jogador. Esse jogo do Bessa ficou-me na memória pelo absurdo. Acho bem que um treinador critique um jogador da mesma forma que o elogia, mas um jogo em que o Benfica fica com 10 porque Musa tem uma entrada imprudente sobre o adversário quando vencia por 1-0, sofre o 2-2 de penalti porque o menino bonito (António Silva) tem um entrada completamente idiota dentro da área sobre o adversário e sofre o 3-2 num contra-ataque normal, mas a culpa foi do Vlachodimos porque falhou no 1-1...Agora é Neres que está com a cabeça noutro sitio.
Schmidt é especialista em sacudir a água do capote para se proteger.
Ui, que mauzinho, malmequeres e nenúfares😂. Admira-me, é na altura certa, não pegar o boi pelos cornos.