A “ajacização” do United
Com De Ligt e Mazraoui, são seis os ex-pupilos de Ten Hag no Ajax a integrarem o plantel do Manchester United num ano que pode determinar que ele seja o treinador mais duradouro ali desde Ferguson.
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Está aí a Premier League, com um Manchester City estranhamente calmo nas compras – talvez porque vai começar no mês que vem outro campeonato pelo menos tão importante, quando enfrentar a Comissão Independente que vai deliberar sobre as irregularidades financeiras de que é acusado –, um Arsenal que parece bem mais forte do que na época passada e os dois campeões de gastos habituais a fazerem sonhar os seus adeptos. O Chelsea, já se sabe, e como bem descreveu Jonathan Wilson na coluna que assina regularmente no Guardian, assemelha-se a “um viciado, que procura desesperadamente a subida de endorfina de uma aquisição”. Foi o que se viu, por exemplo, na forma como parece tencionar superar o fracasso na compra de Samuel Omorodion ao Atlético Madrid fazendo uma tentativa por João Félix. O Manchester United, por sua vez, decidiu finalmente entregar de vez as chaves do carro a Erik Ten Hag, que ia ser despedido à conta do inconcebível oitavo lugar da época anterior, mas que de tal modo foi reabilitado pela vitória na final da Taça de Inglaterra que até já o deixaram ir buscar mais dois jogadores que tinha tido com ele no Ajax para enfrentar uma época em que, em casa ou na Liga Europa, terá de ganhar coisas para se tornar o treinador mais duradouro em Old Trafford desde a reforma do mito Alex Ferguson.
A forma como o Manchester United está a transformar-se numa espécie de mini-Ajax é uma equação problemática se levarmos em conta que se fala de um dos clubes com identidade mais marcada em toda a Europa. Quando Ten Hag chegou a Old Trafford, no Verão de 2022, já lá tinha Donny Van de Beek (39 milhões de euros). Juntou-lhe logo Antony (95 milhões) e Lisandro Martínez (57,3 milhões), já para não falar de Christian Eriksen, que jogara no Ajax, mas não debaixo das ordens dele. Ao segundo ano chegou Andre Onana (50,2 milhões). E esta semana completou as aquisições de Matthijs De Ligt (45 milhões) e Noussair Mazraoui (15 milhões). Ao todo, são seis homens que estiveram com o treinador no Ajax. É mais de metade do onze, se todos forem titulares. E será uma espécie de admissão – ainda que o clube tenha entretanto mudado de decisores, com a venda dos Glazer a Jim Ratcliffe – de que se cometeu um erro colossal quando não foi permitido a Ole Gunnar Solskjaer contratar um certo Erling Haaland, que ele conhecia bem de o ter comandado no Molde FK, em Janeiro de 2019. “Eram 20 milhões de euros”, contou o técnico que nessa altura acabara de substituir José Mourinho num episódio particularmente interessante e divertido do podcast The Overlap, que já é de Março passado mas que ainda pode ver aqui.
O Manchester United anda em ciclos que não passam dos três anos desde que Alex Ferguson decidiu retirar-se, em 2013. David Moyes nem uma época lá durou. Louis van Gaal chegou às duas antes de aparecer Mourinho, que resistiu dois anos e meio. Seguiu-se Solskjaer, que fez o que restava da temporada de 2018/19 com sucesso relativo e isso acabou por lhe permitir ficar no cargo até Novembro de 2021 – quase três anos, portanto. Depois da experiência com Rangnick, que até hoje ninguém sabe se foi fruto do simples desespero ou de uma qualquer epifânia filosófica, Ten Hag vai agora entrar na sua terceira temporada. Se a acabar, torna-se o mais duradouro dos treinadores do pós-Ferguson, um escocês que chegou a Old Trafford em Novembro de 1986 e só conquistou o primeiro troféu em Maio de 1990. Três anos e meio depois da estreia com uma derrota (0-2) em Oxford, portanto. O futebol tornou-se mais rápido e não foi só dentro do campo. Fora dele, o comando de um clube grande também viu todas as exigências que acarreta acelerarem além do que acontecia na década de 80, quando ao fim de três anos sem troféus Ferguson também teve de enfrentar a pressão de uma possível saída sem glória. E isso agrava-se quando se trata de um clube que gasta como gasta o Manchester United. Nos cinco mercados a que presidiu, Ten Hag já vai com um saldo de investimento (as compras menos as vendas) de 448 milhões de euros em dois anos e meio. Solskjaer ficou-se pelos 169 milhões em cinco mercados também. Mourinho chegou aos 351 milhões no mesmo período, mas nem um nem outro tiveram a benesse de ir buscar gente da sua confiança direta, como tem agora o neerlandês ou como teve Mourinho quando chegou ao Chelsea, década e meia antes, por exemplo.
Em cinco mercados no Manchester United, Mourinho só contratou dois jogadores que já tinha dirigido: Ibrahimovic e Matic. No Chelsea atingira essa fasquia logo no primeiro mês, com as chegadas a Londres de Paulo Ferreira e Ricardo Carvalho, aos quais juntou Tiago, que conhecia de o defrontar e por com ele partilhar empresário, o então emergente Jorge Mendes. Ricardo Carvalho (que depois também contratou no Real Madrid) ou Maniche (que ele começou por recuperar no Benfica e teve depois no FC Porto e no Chelsea) só não foram os primeiros casos de “jogadores da confiança do treinador” na carreira do Special One porque ele já levara Nuno Valente e Derlei de Leiria para o Porto, quando chegou às Antas, em 2002. E é evidente que a entrada num grupo de gente que conhece suficientemente bem as ideias do treinador e que com ele já obteve sucesso pode ter um efeito altamente benéfico no coletivo, porque ajuda a espalhar a crença no processo. A dúvida, no caso do United, por serem tantos os ex-jogadores de Ten Hag no plantel, já pode ter que ver com outra questão. É que os neerlandeses olham para a competição por ciclos. Mesmo sendo também um clube vendedor, o Ajax, por exemplo, pratica uma política radicalmente diversa da dos nossos maiores clubes: os portugueses deixam sair os talentos a conta-gotas, para se manterem no topo, os neerlandeses preferem mudar tudo de cima abaixo de uma só vez, para reiniciarem o processo com uma equipa nova. É por isso que no Ajax é tão natural chegar a uma meia-final da Champions, como o clube chegou em 2018/19, como ficar fora da Europa em Agosto, como lhe acontecera um ano antes, afastado pelo OGC Nice da Champions e pelo Rosenborg da Liga Europa ainda nas pré-eliminatórias.
O perigo da “ajacização” do Manchester United é esse: a forma por vezes demasiado ligeira com que se encara o insucesso, antecipando que no ano seguinte haverá mais chances e com os jogadores um ano mais velhos e experientes. É uma maneira mais saudável de encarar isto da alta competição, mas não é uma maneira admissível no topo da pirâmide alimentar. No Manchester United, apesar da juventude de Mainoo (19 anos), Garnacho (20) ou Højlund (21), não há mais chances. Os 1.967 milhões de euros gastos no mercado em 12 anos, desde a saída de Ferguson – faltam pouco mais de 30 milhões para se chegar aos dois mil milhões... –, com apenas uma Liga Europa e duas FA Cups a darem entrada no museu, dizem-nos que este será um ano decisivo para o projeto. Ten Hag escolheu ir com quem confia nele, mas daqui por uns meses estará a ser avaliado em função dessa escolha. E o falhanço não será tolerado.
Ainda é da opinião que Ten Haag deve ser despedido do Man Utd?