O Boavista como exemplo
Gérard López tem duas equipas que, a crer nas palavras de Cristiano Bacci, são “de distrital”. Mas uma delas joga na I Liga. Em que medida é que o caso do Boavista pode ser exemplar?
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A estreia do Boavista na Liga dos Campeões até teve um eclipse solar total. Foi em Agosto de 1999 e lembro-me bem de lá estar, em Copenhaga, com direito a óculos especiais, daqueles que protegiam a vista, antes da vitória sobre o Brondby IF, a abrir o caminho da fase de grupos da competição milionária em que, até então, só os três grandes tinham representado Portugal. Aquele era um Boavista em curva ascendente – ainda debaixo do comando de Jaime Pacheco viria a ser campeão nacional dois anos mais tarde. Vivia um pouco acima das possibilidades, empurrado pelo magnetismo facilitista do patriarca do clã Loureiro, o major Valentim, mesmo que este já tivesse deixado as rédeas ao filho João para se ocupar da Liga. Mas estava muito longe da realidade de hoje, em que se debate entre um acionista ausente a todos os títulos, o hispano-luxemburguês Gérard López, e as notícias acerca do interesse de um investidor de Singapura, que na verdade ninguém sabe se é uma promessa ou uma ameaça. O Boavista é o exemplo acabado do que pode correr mal no futebol-indústria – como o é o Belenenses. E se ainda ali está para nos recordar disso é graças a uma resiliência sem paralelo e à escandalosa falta de comparência do regulador. Porque o futebol-indústria não é uma escolha da qual se possa fugir. É uma realidade. E cada vez mais se percebe que é uma realidade que precisa de ser regulada.
A situação em que vive o Boavista de hoje é incompatível com uma Liga que quer ser a sexta mais poderosa da Europa. Atolado em dívida, o clube não pode inscrever jogadores há quatro janelas de mercado, vendo-se forçado a preencher com ex-juniores ou jovens que mantinha a rodar por escalões inferiores as vagas deixadas pelos elementos que vai perdendo ou então transferindo para acudir a uma situação financeira desesperada. Sai Pedro Malheiro? Entra Pedro Gomes. Saem Chidozie e Sasso? Entram Alex Marques e Tomás Silva. Sai Makouta? Entra Marco Ribeiro. Só dez dos 22 jogadores utilizados esta época pelos axadrezados tinham antes do início pelo menos um campeonato (34 jogos) no escalão principal. “Jogamos como uma equipa dos distritais, mas estamos na I Liga”, disse na semana passada o italiano Cristiano Bacci, treinador cujo milagre competitivo levou o Boavista a somar seis pontos nas primeiras oito jornadas da competição, permitindo aos adeptos acalentar esperanças de manutenção, à espera de tempos melhores. A ideia de Bacci era a de valorizar a garra dos seus jogadores, mas a afirmação pode ser virada do avesso e servir para evidenciar como este Boavista está completamente desenquadrado da realidade do campeonato que disputa. E isso devia levar-nos a todos a refletir sobre as regras do jogo – e digo-o agora, numa altura em que o facto de não ter acabado de jogar nem estar prestes a defrontar um grande permite que esta afirmação valha por si e não seja vista como maneira de menorizar vitórias que têm pouco ou nada que ver com o que deve ser a nossa Liga.
Este podia ser um plano de austeridade consciencioso, por mais longe que esteja da mania das grandezas e do novo-riquismo do início do século, se ficasse pelo menos a ideia de que há um plano e não uma simples fuga para a frente, à espera do fim da estrada. Se houvesse da parte de López a mínima intenção de se tornar aquilo que prometeu ser quando chegou: um “investidor”. López não é a origem do problema – essa estará, por um lado, no passo maior do que a perna dado há décadas e, por outro, na incapacidade de todos os sucessores para acompanharem a vertigem do bulldozer que era Valentim Loureiro. “Quantos são? Quantos são?”, perguntava o Major Valentão, o boneco do Contra-Informação que fazia as vezes do antigo presidente boavisteiro. Contudo, se não é a origem do problema, López também não foi a solução. A dívida do Boavista é grande, mas não seria muito menor quando o igualmente dono dos Girondins de Bordéus assumiu a posição maioritária da SAD, em Outubro de 2021. López sabia ao que vinha, da mesma maneira que o saberia no antigo clube de Chalana, que deixou cair nos regionais por causa do mesmo problema – incapacidade para saldar as dívidas que tinham levado à saída do fundo de investimento que era dono da maioria do seu capital, o Kings Street Capital.
Se em França a tomada de posição de López ainda valeu ao Bordéus a reversão do processo de descida administrativa à II Liga que estava alinhavado em 2021, a incapacidade para dar à equipa meios para, primeiro, assegurar a manutenção no campo – desceu, em último lugar, logo no ano seguinte – e, depois, voltar a subir – ficou a três pontos do objetivo, em 2023 –, conduziu ao depauperar da situação financeira e à falência que neste verão levou o clube aos distritais. Para usar a expressão de Bacci, mesmo com um renascido Andy Carroll – cinco golos em três jogos deste avançado inglês que já movimentou muitos milhões no mercado –, o Bordéus é uma equipa de distrital que, de facto, joga no distrital. E joga no distrital porque, apesar de tudo, em França se está um patamar acima daquilo que vemos em Portugal e a regulação funciona. Podemos agora vir dizer que são um mistério as razões que, ano após ano, permitem que o Boavista continue a ver validadas as suas inscrições na I Liga, mas nem é só aí que coloco a necessidade de regulação. É, sobretudo, no escrutínio que não é feito e que devia sê-lo sempre que a um clube chega um promitente investidor. Pelas Ligas enquanto reguladoras, mas também pelos próprios clubes. Esta semana tem sido notícia a presença no Porto de Alan Borges, um brasileiro que se anuncia como intermediário de um investidor de Singapura, interessado nas ações de López. O erro, muitas vezes, é achar que os amanhãs que cantam justificam tudo e, enquanto não houver regulação eficaz para se medir a capacidade destes investidores e as suas reais intenções, não fazer internamente essa avaliação antes de se entregar o clube ao primeiro falinhas-mansas que por lá apareça com promessas. Nem de propósito, por também vir de Singapura, ainda hoje os adeptos do Valência CF não sabem o que fazer para se verem livres de Peter Lim. E, pelo andar da carruagem – último lugar da Liga espanhola, à décima jornada – podem ter de pensar nisso no segundo escalão, onde será muito mais difícil obter receita para recuperar.
O regulador não atua também porque o adepto não quer que atue. Quando o Boavista desceu e bem de divisão, foi uma comoção nacional exacerbada, com lamentos sobre a suposta "injustiça" da aplicação das regras. Após o Boavista conseguir a decisão de anulação da reunião onde se decidiu a sua descida de divisão, vimos a Liga a mostrar o que é enquanto regulador e uma onda de favores ao Boavista, desde a colocação no processo na gaveta à espera da sua prescrição, até ao alargamento de um campeonato que não precisava de ser alargado, com o campeonato a 16 até a prestação europeia das nossas equipas melhorou, só para caber o Boavista. Agora os favores continuam com uma Liga mais preocupada com os estádios onde jogam os grandes, do que com o que realmente interessa...
O comportamento das nossas equipas com os investidores lembra um episódio dos Simpson em que um charlatão consegue convencer a cidade e os seus cidadãos a investir num monocarril, só não sei se os investidores também cantam, mas voltamos ao que já critico há muito tempo. Sim, concordo na necessidade de escrutínio, mas volto a dizer que os nossos clubes têm de repensar o modelo de gestão do futebol, claro que as vendas fazem parte mas os grandes não pode estar dependentes delas e os pequenos não podem continuar a navegar à vista na esperança de que um investidor apareça, vemos o resultado no Boavista e no Belenenses, a falta de escrutínio acaba por estar ligado a isso mesmo. Depois a necessidade absurda de o clube ter de constituir uma sociedade (unipessoal ou anónima), acaba por colocar os clubes ainda mais nas mães destas situações.
Gérard López não e um investidor, porque um investidor investe. Dado que o senhor Gérard López é proprietário de dois clubes falidos, não percebo o que ele pretende, mas investidor, ele não é de certeza.
Bom dia.
Concordo com o texto.
Porém, acho que o National 2 em que o Bordéus compete é uma competição nacional e não só regional (há equipas da Bretanha na mesma série, por exemplo). Agora, é certo que é o 4° escalão (talvez ao nível do nosso Campeonato de Portugal).
Abraço.