Crónica de uma morte anunciada
Ter consciência da finitude é uma coisa boa. Todos sabemos que a vida um dia se extinguirá. Usar essa noção para fazer ajustes de contas já diz mais de nós do que daqueles que pretendemos atingir.
Palavras: 1216. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Pinto da Costa não é Santiago Nasar, embora ao longo da vida já tenha acumulado amores e desamores suficientes para causar reações de despeito, duas delas até sob a forma de livro. Por outro lado, nunca teve ao dispor um talento literário como o de Gabriel García Márquez a descrever-lhe o percurso, ainda que a sua obra de 42 anos na presidência do FC Porto tenha incitado paixões e ódios suficientes para inflamar o discurso a seu respeito. Anjo azul e branco para uns, diabo flamejante como um dragão para outros, o ex-presidente do FC Porto parece ter sentido a necessidade de procurar uma nova razão para existir depois de os sócios do clube lhe terem mostrado de forma esmagadora a porta de saída, nas eleições de Abril – e tê-la-á encontrado na macabra planificação das suas próprias exéquias, mas também num visceral ajuste de contas com os que ficam. A revelação de quem será bem-vindo e de quem não é desejado no seu próprio funeral, feita na pré-publicação do livro “Azul até ao fim”, assinado pelo ex-presidente portista, é mais do que um legado. É uma tentativa de influenciar a forma como aqueles que lhe viraram as costas serão vistos pela sociedade e, mais ainda, pelos meios portistas que ainda lhe são afetos. E isso, além de dizer mais dele do que daqueles que quererá atingir, porque o diminui na sua grandiosidade, já me parece fazer mais mal do que bem ao clube que ele sempre defendeu.
Pinto da Costa é a figura mais importante dos mais de 100 anos de história do FC Porto. Foi ele que, nos 42 anos de presidência, e até antes disso, nos anos de aliança com Pedroto, ainda como diretor do departamento de futebol, transformou uma dócil potência regional numa força internacional. Mas não é – como ninguém é – eterno. Viver com a noção da sua própria finitude há-de ser tão mais difícil quanto maior for a relevância que cada um atinge em vida, mas a responsabilidade de saber gerir essa noção também cresce com a importância assumida enquanto se está no ativo. Alex Ferguson, por exemplo, será uma das figuras mais importantes na história do Manchester United, talvez só igualado por Matt Busby ou Bobby Charlton – e está provavelmente acima de ambos –, mas isso não impediu a nova gestão do clube de cortar o salário de dois milhões de libras (2,4 milhões de euros) anuais que ele recebia para fazer de embaixador. Logo se ergueram vozes de antigos jogadores, Eric Cantona à cabeça, a dizer que era “um escândalo”. “Sir Alex devia poder fazer aquilo que quisesse no clube até ao dia em que morresse”, opinou o francês, optando por ignorar que, no seu esforço de austeridade, a administração Radcliffe tinha já despedido 250 funcionários que ganhavam, em média, 40 mil libras (48 mil euros) ao ano. E que, por mais redundantes que fossem, certamente faziam mais do que o ex-treinador. É provável que Ferguson, ainda por cima um homem cuja paixão pelo dinheiro chega a ser motivo de anedotas, tenha antipatizado com a medida assumida por Jim Radcliffe. Ainda assim, em nome do amor que terá ao clube – e que será certamente menor do que aquele que tem Pinto da Costa pelo FC Porto, porque Ferguson é escocês e só entrou no United aos 44 anos – não estou a vê-lo a riscar os administradores da lista de convidados para o seu funeral.
Quando Pinto da Costa veta nomes como os de Helton, Maniche, André, Sousa ou Eduardo Luís no seu enterro está a atingir gente que, apesar do que deu em campo, é muito menor do que ele na história do clube – e isso revela mais sobre a sua falta de grandiosidade do que da motivação que levou estes antigos jogadores a apoiar André Villas-Boas nas últimas eleições. Como se estar do outro lado da barricada eleitoral fosse uma traição imperdoável e não uma forma saudável de viver em democracia. Quando exclui André Villas-Boas está a eternizar uma fratura de que a pacificação do FC Porto não precisa, recusando-se a aceitar o virar de página na realidade do clube. O objetivo real de Pinto da Costa não é garantir que fulano ou sicrano o acompanharão ou não até ao cemitério. Como ele próprio diz acerca de Rui Costa, mais uma vez visto com indiferença, agora pelo ex-presidente de um rival, “se quiser vir, compreendo”. Na verdade não compreenderá nada, nem isso o pode tranquilizar ou irritar, porque estará morto. O objetivo real de Pinto da Costa é manter viva a sua fação na luta pelo poder no clube, é acicatar os seus apoiantes contra esta nova ordem, como se no mesmo momento em que planeia o funeral estivesse ainda a pensar voltar ao cargo ou pelo menos em patrocinar um sucessor designado. Acaso alguém imagina o funeral de Pinto da Costa sem que o clube de toda a sua vida se fizesse representar pelo presidente em exercício? E seria bom para o clube que, estando Villas-Boas presente, a multidão de saudosos do ex-líder o apupasse? Claro que não. Pinto da Costa é livre de se sentir traído, suplantado por quem chegou a promover em cargos menores, mas devia ter o sentido de estado de entender que o mundo entretanto andou para a frente.
No meio de todas as declarações ontem libertadas, as que mais confundem são as proferidas acerca de Sérgio Conceição, que o anterior presidente apresentou na Primavera como trunfo eleitoral. “Soube que o Sérgio Conceição não ficará se eu sair”, disse Pinto da Costa ao JN em vésperas das eleições, dias depois de lhe ter renovado o contrato. Agora, afinal, vem a saber-se que o ex-presidente decidira não prolongar o vínculo do treinador logo em Março de 2023, quando, após a equipa ser eliminada da Champions pelo Inter Milão, aquele veio queixar-se de estar à frente de um clube sem capacidade para fazer contratações. “Faço da lealdade condição essencial para conviver”, escreve agora o antigo presidente. “Depois desta desilusão, disse a mim mesmo: ‘Basta!’”, assume, antes de responsabilizar o treinador pela insistência em transferências que acabaram por ser “ruinosas”, como as de José Luís e de Nakajima, e de justificar com esses dois negócios a necessidade de vender Luís Díaz. A matemática não bate certo, porque a saída do colombiano suplantou em muito os gastos com o cabo-verdiano e o japonês e o FC Porto nem por isso ficou financeiramente pujante, mas isso já nem interessa nada. Sérgio Conceição certamente também não vai contrariar o presidente, porque vive num plano diverso, o plano dos que fazem coisas. O que interessa retirar daqui é que os grandes homens – como é indiscutivelmente Pinto da Costa – precisam sempre de quem lhes faça o contraditório. Quando crescem acima disso ou sem isso, perdem a noção da realidade e fazem mais mal do que bem. O Pinto da Costa arguto e sagaz do auge não gostaria do que diz agora o homem em que ele se tornou.
Pinto da Costa é a prova de que anos a mais no poder, com acesso às prebentas, reverências e negócios pessoais que isso permite, tornam qualquer pessoa refém do seu ego e benesses. Ao fim de 42 anos na presidência, apesar dos méritos desportivos (a que também não são alheias as práticas criminosas que o Apito Dourado revelou - e não pode haver discussão sobre isto), ninguém se ama menos do que à instituição que liderou. E não restam dúvidas que Pinto da Costa não hesitará em manchar a imagem do clube se necessário for para proteger a sua.
PS1: Pinto da Costa partilha com Ricardo Salgado pelo menos uma coisa. E não é a idade avançada. Apesar da sua muito questionável idoneidade no exercicio de funções, políticos, jornalistas e outros intervenientes no espaço público prestaram-lhe vassalagem durante décadas e não poucos continuam ainda hoje com receio de dizer o que deve ser dito: Pinto da Costa é um criminoso não julgado e uma figura infrenquentável.
PS2: Grande livro esse de Garcia Marquez.
Pinto da Costa fala da lealdade para atacar Sérgio Conceição, um dos homens que mais leal foi a Pinto da Costa, e a quem parece que Pinto da Costa está a culpar pela situação financeira do clube. Ou seja, Pinto da Costa valoriza a lealdade dos outros, não a dele.
Quanto a esse episódio, se Sérgio Conceição o tivesse feito para se proteger a ele, como fazia Paulo Bento no Sporting (sem razão, porque chegou a ter plantel para vencer ou lutar por isso), ainda entenderia a zanga, mas naquele contexto parece-me absurdo.