Zidanes, Pavones e pastilhas
Florentino já deixou cair a política dos Zidanes e Pavones, mas continua a acreditar que não vale muito a pena gastar com jogadores de plantel. Depois cola-se tudo com pastilha elástica.
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Há um ano apareceu aquele vídeo que depois se tornou viral, em San Mamés, quando antes de um Athletic Bilbau-Real Madrid um adepto mais descarado pediu uma pastilha elástica a Carlo Ancelotti e o treinador, generoso, lhe deu duas. Há um par de semanas, num pós-jogo do Real Madrid, a reportagem da ESPN Brasil estava a fazer diretos junto ao banco que tinha sido dos merengues e um dos seus jornalistas fotografou e publicou depois a imagem de um copo de plástico cheio de pastilhas elásticas já mascadas, uma espécie de bolo alimentar algo grotesco que era a prova da forma que o treinador italiano encontra para descarregar o stress dos desafios desde que o privaram de fumar nos estádios. No dérbi de Madrid, no domingo, as pastilhas elásticas tiveram ainda mais serventia: há-de ter sido com um pacote inteiro que Ancelotti colou um setor defensivo estranhamente curto, se nos lembrarmos de que falamos de um colosso como o Real Madrid. Mesmo com Éder Militão e Alaba a padecerem de roturas do ligamento cruzado anterior de um dos joelhos – e por isso fora de competição durante uns meses largos – o clube mais poderoso do Mundo, o clube que contratou Bellingham e que se diz preparado para acolher Mbappé, escolheu conscientemente não ir ao mercado por mais defesas centrais. Ainda lá tinha dois aptos, Rudiger e Nacho. E, caso precisasse, podia adaptar o médio Tchouameni. Só que no último fim-de-semana, em Getafe, Rudiger magoou-se e Tchouameni viu o quinto cartão amarelo, ficando também ele impedido de jogar o clássico contra o Atlético. No dérbi, Ancelotti teve mesmo de inventar e formou dupla com Nacho, o central que lhe resta – e que no início da temporada seria o quarto da hierarquia –, e Carvajal, o lateral direito que em Abril de 2022 já tinha feito dupla com Alaba no prolongamento de um jogo da Liga dos Campeões contra o Chelsea em que era preciso marcar um golo e tinha sido Nacho a lesionar-se. Tal como nessa meia-hora que começou a encaminhá-lo para a vitória na final de Paris, contra o Liverpool FC, o Real Madrid passou a ter no quarteto defensivo dois jogadores de 1,73m – Lucas Vásquez e Carvajal. E isso, naturalmente, paga-se. “Eles tinham mais altura e marcaram num duelo aéreo”, comentou no final Ancelotti, a quem no entanto nunca se viu uma queixa relativa à duvidosa política seguida pelo Real Madrid, uma espécie de reprise da famosa “Zidanes y Pavones” que deixou Carlos Queiroz a puxar os cabelos de desespero na primeira passagem de Florentino Pérez pela presidência. Florentino foi eleito pela primeira vez em 2000, muito em cima da promessa de contratar Figo – o “Pastilhas”, para quem lhe acompanhou o crescimento – ao FC Barcelona. Daí cresceu para a implementação da política que na generalidade era a dos “Galacticos” e que na especialidade se transformou na composição do plantel com Zidanes e Pavones, com referência ao francês, campeão do Mundo e da Europa quando foi contratado à Juventus, em 2001, e a Pavón, um defesa-central canterano que começava a dar os primeiros passos na equipa por essa altura. O orçamento era para gastar em estrelas, como Figo (chegou em 2000), Zidane (2001), Ronaldo (2002), Beckham (2003), Owen (2004) ou Robinho (2005), porque eram eles que vendiam camisolas e geravam entusiasmo popular. Os outros, os jogadores mais gregários, podiam ser trocados por miúdos. Só que, como percebeu Carlos Queiroz, contratado em 2003 para substituir Del Bosque à frente de uma equipa que perdera, por exemplo, o pouco valorizado Makelelé, um médio-defensivo que depois fez as delícias de Mourinho no Chelsea, no campo a coisa não dava bons resultados. Depois da Supertaça espanhola de 2003, última competição jogada por Makelelé, o Real Madrid não ganhou mais nada até Florentino se demitir, em 2006. Voltou em 2009 sem temperar a busca de estrelas que o levou a contratar Kaká ou Cristiano Ronaldo, mas apostando simultaneamente em jogadores utilitários de grande nível. Exemplo disso são as contratações recentes de Alaba, Camavinga, Tchouameni ou Rudiger. Mas a recusa de fazer o que fez, por exemplo, o FC Porto – quando contratou Otávio para compensar a veterania de Pepe, a lesão de Marcano e a queda em desgraça de Carmo – na recomposição do centro da sua defesa, ainda por cima com cumplicidade do treinador, que acaba de renovar contrato na ideia de estar lá para acolher Mbappé, no Verão, deixa muitas dúvidas acerca da capacidade deste Real Madrid para se impor. A Liga Espanhola parece controlada, que o Girona FC há-de cair e o Barça e o Atlético estão muito longe, mas a Europa exigirá mais do que esta equipa tem para dar. Porque acima de um certo nível não é possível colar os cacos com pastilha elástica.
A gestão da carreira. As declarações de Diego Moreira, um dos craques da equipa do Benfica que ganhou a UEFA Youth League em 2022, hoje reproduzidas pelo jornal O Jogo, são a prova do muito que vai mal na cabeça dos jovens futebolistas sem capacidade para entenderem e gerirem o sucesso – bem como da falta de ajuda de quem os acompanha e da falta de noção dos clubes que os formam. Diego era uma das estrelas daquela equipa, mas passou a grande parte da temporada que se seguiu na equipa B – onde também estiveram Martim Neto, Ndour, João Tomé ou Rafael Rodrigues, por exemplo. Outros ainda foram primeiro para os sub23, escalão abaixo em termos hierárquicos. De todos os que jogaram a final com o Salzburgo, só António Silva se impôs na equipa principal logo na época passada. Henrique Araújo tem acumulado empréstimos, Tomás Araújo esteve no Gil Vicente e voltou agora em busca de espaço. É possível que, tendo aceitado renovar pelo Benfica – ainda que a cláusula de rescisão que aparentemente queriam impor-lhe, de 100 milhões de euros, fosse um claro abuso – Diego estivesse agora onde está hoje Tiago Gouveia, que é três anos mais velho mas nem jogou a final de 2020 da mesma Youth League. Ao escolher sair, assinando pelo Chelsea, entrou no turbilhão que é a passagem para um daqueles clubes que dispara a tudo o que mexe sem saber muito bem o que quer apanhar. E falhou o salto. Fez 45 minutos nos Blues, na Taça da Liga, e saiu emprestado para o Olympique Lyon. Em França, na confusão que tem sido a gestão-Textor, ainda jogou sete vezes no campeonato e duas na Taça – cinco vezes titular – mas também não ficou para contar a história e está agora de volta a Londres. Há um efeito destrutivo na vertigem de sucesso com que os jogadores jovens, os seus agentes e os clubes encaram a construção das carreiras. Os miúdos fazem uns golos nas equipas secundárias e exigem logo a titularidade nas principais. “Queria que me mostrassem que era importante para o projeto desportivo”, diz agora Diego, curiosamente dias depois de Úmaro Embaló, uma das estrelas da equipa finalista de 2020, ter voltado a Portugal, para jogar no Rio Ave, por empréstimo do... Fortuna Sittard. Os clubes aproveitam a cobertura mediática dos jogos dos miúdos e a propensão dos grandes europeus para andar à pesca e querem impor cláusulas de rescisão absolutamente irreais. 100 milhões por um puto que tinha feito 23 minutos na equipa principal? E estavam à espera que ele assinasse? E os agentes colaboram, recusando ver que o rei vai nu.
Beneficiados ou prejudicados? Já vos disse ontem que não vi no adiamento do FC Famalicão-Sporting nenhum complot para tirar os leões do topo da Liga. O que não quer dizer que esse adiamento não tenha efeitos no campeonato. A questão é que ninguém de boa-fé pode dizer se esses efeitos foram benéficos ou prejudiciais para os leões. Quando o jogo se realizar, Rúben Amorim já terá Morita e Diomande: é bom. Mas a equipa estava a funcionar muito bem sem eles: é mau. Se não houve jogo, não houve risco de Edwards, Pedro Gonçalves ou Esgaio verem um amarelo que os afastasse da receção ao SC Braga: é bom. Mas quando se jogar outros poderão estar à bica, além de que, do outro lado, os famalicenses já terão tido tempo para se adaptarem à falta de Otávio, esta semana transferido para o FC Porto: é mau. Como não jogaram no sábado, os futebolistas do Sporting terão pernas mais frescas para os desafios com a UD Leiria e o SC Braga: é bom. Mas Rúben Amorim teve de lhes dar um treino super-intenso para evitar a perda de ritmo que advém de semana e meia sem jogar: é mau. Se tivesse jogado (e ganho) o Sporting teria na mesma a vantagem psicológica de ser líder, ao passo que assim olha para cima e vê lá o Benfica: é mau. Mas desde que uma vez li isso numa BD de Michel Vaillant que sei que estar à frente tem as suas coisas negativas, a começar pela pressão acrescida: então é mau. O que é que isto nos diz? Que o melhor é deixarmos de perder tempo a inventar teorias da conspiração e maneiras de justificar fracassos que ainda por cima nem aconteceram. O Benfica é líder, como o é o Liverpool FC na Premier League. O Sporting é segundo e subirá ao primeiro lugar se ganhar o jogo que tem em atraso, como o Manchester City. Lá é tudo claro. Só cá é que há complots?
Não tinha pensado no paralelismo entre o Liverpool-City/Benfica-Sporting. É curioso ambos os clubes com jogo em atraso poderem ir para a liderança caso a diferença se mantenha e ganhem os respectivos jogos.