Zé Pedro, Sérgio e o jogo
Que Zé Pedro tem sido uma surpresa no FC Porto, já todos tínhamos entendido. Mas as razões para a sua ascensão e forma como é levado a encarar o jogo teria de ser Conceição a explicá-las. Sem tabus.
Para os mais desatentos, pode até parecer estranho misturar Sérgio Conceição e pedagogia na mesma frase, mas a intervenção espontânea do treinador do FC Porto no “Futebol Total”, do Canal 11, ontem à noite, foi das coisas mais pedagógicas que o futebol português nos vai trazer esta época e confirma a existência de dois homens a debater-se dentro de um só corpo: há o furioso, que emerge à superfície trazido pela frustração dos maus resultados e enfatiza as injustiças de que crê ser alvo através de comportamentos tantas vezes inaceitáveis na linha lateral, e há o genuinamente compreensivo e generoso, que partilha conhecimento e ajuda toda a gente a compreender melhor o jogo das suas equipas. Todos nós temos um pouco estas personalidades múltiplas, mas também não é isso que está aqui em causa. E do que vos falo hoje também nem é tanto de uma coisa que já tinha sido possível observar a olho nu: que Zé Pedro tem sido uma belíssima surpresa no centro da defesa do FC Porto, um lugar ao qual já nem ele certamente sonhava chegar quando, aos 23 anos, fez uma época no Campeonato de Portugal ao serviço do Estrela da Amadora. Os elogios do treinador ao jogador, que é rápido, inteligente ou que até bate bem livres, que foram o que mereceu mais atenção na cobertura feita do acontecimento, não são o mais relevante. Por um lado porque neste momento faria zero sentido que Conceição o criticasse e o elogio é o mais normal. Por outro porque bastaria ver os jogos para entender que Zé Pedro tem as condições técnicas e táticas para ser um bom central de I Divisão, competição na qual, porém, só se estreou na semana passada, aos 26 anos, e porque três dos que estavam à frente dele na hierarquia da posição não podiam jogar, dois por lesão e um terceiro por expulsão. A favor dele, além das tais condições que também só os mais atentos poderiam inferir de uma carreira toda ela passada em equipas de menores dimensões ou nas formações secundárias do SC Braga e do FC Porto, jogaram ainda mais dois fatores. Um foi pura casualidade: na primeira experiência a sul, em 2020, jogou no Estrela com um dos filhos de Conceição, o que levou o treinador do FC Porto a reparar nele quando via os jogos. O segundo também diz pelo menos tanto de Sérgio Conceição como do jogador – é a aversão do líder portista ao vedetismo dos miúdos que saem da formação dos grandes e que já se tinha visto, por exemplo, em Fevereiro de 2021, quando o Sérgio furioso saiu da casca após um empate caseiro com o Boavista, em jogo que os dragões abordaram com Diogo Leite, Fábio Vieira e João Mário no onze inicial. Os três foram substituídos ao intervalo, com 0-2 no marcador, tendo no final Conceição falado mais de “selfies” nas redes sociais do que do jogo em si. Ora as duas boas exibições de Zé Pedro nos jogos com o Benfica – estreia de fogo – e o Portimonense levaram a que aparecesse o outro Sérgio, o generoso, que ligou para o Canal 11 e fez aquilo que todos os treinadores deviam fazer, logo a começar na resposta a perguntas no final dos jogos, até para que depois todos nós pudéssemos entender melhor, não só o jogo em si como o que vai na cabeça de quem o desenha estrategicamente – e isso, desculpem que vos diga, não está ao alcance de ninguém, por mais predestinado que seja para entender o futebol. E faz falta. Faz falta entender que Zé Pedro não arriscou no passe interior porque o treinador lhe tinha dito especificamente para não o fazer, dada a densidade que o adversário apresentava naquela zona, preferindo ter a equipa a jogar mais por fora. Tal como teria feito falta a quem reagiu com aplausos irónicos no Sporting-Atalanta a um passe feito para o lado direito, em direção a Fresneda, saber aquilo que Rúben Amorim explicou no final, que tinha pedido à equipa para insistir por dentro, usando o ala sobretudo como manobra de diversão para alargar a linha do adversário. Esta é a dimensão que interessa no futebol. Pena é que nós, jornalistas, comentadores e adeptos, nos percamos cada vez mais na outra e deixemos sair da casca a personalidade errada, a que acha que os jogos se ganham e perdem porque os jogadores têm mais ou menos empenho ou porque os treinadores mostram mais ou menos submissão ou até, imaginem, entendimento das suas próprias ideias, que vai-se a ver somos nós quem compreende melhor.
O zero absoluto. Erling Haaland teve, no domingo, contra o Arsenal, o primeiro 0,00 absoluto no índice de golos esperados desde um jogo contra o Tottenham, em Fevereiro. O Manchester City perdeu os dois desafios por 1-0 e é mesmo caso para dizer que se o norueguês marcasse um golo nesses 180 minutos o teria sacado do nada. Não marcou e o que se segue é entender a razão para ele ter passado tão ao lado do que estava a acontecer no relvado. Foi Saliba que o tirou do jogo, mostrando que é um dos melhores defesas-centrais do mundo? É a ausência de Kevin de Bruyne e da sua capacidade para esticar o futebol do City, para acelerar a chegada da bola a zonas de finalização, permitindo ao atacante norueguês tê-la enquanto não está cercado de adversários por todos os lados? É apenas um mau momento de Haaland, que não marca há três jogos (Wolves, RB Leipzig e Arsenal), nos quais acabou com um xG total de 0,80? Todas as explicações são válidas e a verdade far-se-á de um misto das três – e de mais algumas que também nos possam ocorrer. Saliba está um defesa-central de elevadíssimo nível e, nos três jogos antes destes (West Ham, Estrela Vermelha e Nottingham Forest), Haaland já só tinha marcado dois golos, ainda que para um xG de 4,40, que lhe devia ter permitido festejar pelo menos o dobro das vezes. Mas aí, lembrar-me-ão, também já não havia Kevin de Bruyne. Os adversários eram mais fracos? Talvez, mesmo tendo em conta que neste último lote está uma equipa dos Wolves que não é de topo na atual Premier League. A olho nu, o que parece é que o City se perde mais num jogo circular quando perde Rodri – e basta ver que 0,70 dos 0,80 do xG de Haaland nas três últimas partidas foram contra o RB Leipzig, na única partida em que coexistiu com o médio espanhol. Os próximos jogos permitirão confirmar ou negar a teoria, mas não deixa de ser curioso que aquele que podia ser apontado como o mais seguro pilar do guardiolismo possa depois ser visto como único jogador capaz de tirar a equipa do torpor de circulação ineficaz a que ela depois se auto-submete.
De Gyökeres a Cabral. Viktor Gyökeres foi o jogador mais afirmativo do primeiro quarto de Liga, leva oito golos em nove jogos pelo Sporting e mudou a forma de jogar da equipa de uma maneira que tentei explicar aqui, num FDV Report datado de meados de Agosto. Contratado pelos mesmos 20 milhões de euros, Arthur Cabral ainda não se impôs no ataque do Benfica, onde tem estado atrás de Musa, Tengstedt e até de Neres, que foi ponta-de-lança em Milão contra o Inter. O brasileiro ainda não fez um golo em sete jogos e já há muita gente a querer decretar o seu falhanço. Parece-me cedo para isso, da mesma forma que acho demasiado compreensivo apontar como explicação as dificuldades de adaptação a uma realidade de competição diferente, quando se fala de um jogador que alinhava na Série A italiana. O que me parece é que o sucesso de Gyökeres, que chegara aos 25 anos sem ter jogado futebol de I Divisão, e o contraponto no fracasso de Cabral, autor de 17 golos com as cores da Fiorentina na temporada passada, têm muito por contextualizar. A começar pela gestão da escassez que é defendida por Rúben Amorim em Alvalade, em contraponto com o vício da abundância que faz escola na Luz pelo menos desde o regresso de Jorge Jesus. Gyökeres é a primeira opção do Sporting para o centro do ataque, sendo que a segunda é Paulinho (quando não estão os dois em campo). Nessa altura, segue-se na hierarquia o jovem Rodrigo Ribeiro, 18 anos e sete jogos na equipa principal. Cabral chegou ao Benfica para concorrer com Musa e Tengstedt, já viu Neres jogar na posição dele e seguramente ainda verá Gonçalo Guedes fazer o mesmo. Os campeonatos ganham-se com profundidade de plantel? Talvez. Mas no Benfica de 2022/23 o terceiro ponta-de-lança mais usado na Liga foi Henrique Araújo, atrás de Ramos e Musa, com cinco presenças e 65 minutos em campo. Atrás dele ainda vieram Yaremchuk, Rodrigo Pinho e Tengstedt. É certo que estes quatro fizeram apenas meia época – Pinho e Yaremchuk nem isso – mas mesmo que somemos os 65 minutos de Araújo aos 22 de Tengstedt, que veio em Janeiro, quando o jovem madeirense saiu, teremos uma presença insignificante de uma terceira opção que, por ser de um perfil tão diferente, dificulta a sua contextualização no modelo. Uma das razões fundamentais para o sucesso de Gyökeres nestes primeiros meses em Alvalade e para o fracasso inicial de Arthur Cabral é que Amorim sabia exatamente o que queria quando insistiu no sueco e construiu um jogar encaixável nas caraterísticas dele – mais profundidade, mais capacidade de receber longo sob pressão, mais força para arrastar a equipa com ele... – ao passo que a única coisa que recomendava Cabral no modelo de Schmidt era que o 4x2x3x1 do alemão inclui um ponta-de-lança e o brasileiro joga nessa posição. Ainda vai a tempo de fazer jogar a bota com a perdigota? Claro que sim. Mas só com concessões. De parte a parte.
Henrique Araújo é madeirense e não açoriano.