As duas caras do leão
O que é mais difícil no futebol: equilibrar ou desequilibrar? Depende da natureza de uma equipa. Ao Sporting campeão em 2021 custava mais desequilibrar. Este já sofre se o que se lhe pede é gestão.
Foi ao mesmo tempo mentalmente forte e frágil, a exibição do Sporting, ontem, contra o FC Arouca, em Alvalade. A forma como a equipa deu o pescoço à degola, depois da expulsão de Diomande, não aguentando mais do que sete minutos na segunda parte sem cometer um erro de posicionamento atrás face a um adversário que se mostrava confiante em função da sua superioridade numérica, não fazia prever aquilo que se viu depois, quando em vez de resistir o que se pedia aos jogadores já era que fossem atrás do resultado – o que eles fizeram com denodo e categoria, suportados na imensa capacidade de Gyökeres para encontrar o espaço, correr e levar a equipa com ele. Há equipas assim, que não são feitas para resistir – e muitas vezes é essa falta de capacidade para gerir os momentos em que estão por cima que as impede de chegar mais além. Quem tivesse visto a primeira meia-hora daquele jogo, toda no meio-campo defendido por De Arruabarrena mas sempre com dificuldades do Sporting para encontrar o espaço que lhe era roubado por uma organização defensiva sem falhas da equipa de Daniel Ramos, ficaria a pensar que no futebol o difícil é criar, é desequilibrar. Mas quem chegasse ao estádio ali perto do final da primeira parte, quando Diomande foi expulso e, já a ganhar por 1-0, fruto de um truque de prestidigitação de Edwards finalizado por Gyökeres, ao Sporting coube encaixar, já podia ficar com a ideia contrária, a de que no futebol o complicado é resistir, é manter a segurança e os equilíbrios. O golo do empate do FC Arouca foi quase ato contínuo, como se a incapacidade leonina para segurar uma vantagem, para gerir um jogo com menos bola e iniciativa, fosse uma espécie de fatalidade sublinhada apenas pelo belo cruzamento de Jason e pela cabeçada triunfal de Mujica. Quem visse isso acharia – e aqui com razão – que o difícil, no futebol, é jogar com um a menos, mas quem entrasse no estádio nesse momento já podia pensar o contrário e refugiar-se naquela frase sem sentido que alguns treinadores por vezes deixam que reflita a sua frustração, segundo a qual “é mais complicado jogar contra dez”. Só pode ser se os que estão inferiorizados descobrirem no âmago o sentido de urgência de que precisam para recuperar a iniciativa, como aconteceu ontem ao Sporting, que depois materializou esse sentimento numa arrancada de Pedro Gonçalves, feito extremo-esquerdo, e num vólei de Morita, a quem naqueles momentos de inferioridade se pedia que fosse segundo avançado em aproximação a Gyökeres. No futebol, o mais difícil é contrariar a natureza de uma equipa. E a natureza desta equipa do Sporting não é, de todo, a gestão de vantagens. Já as deixou escapar bem mais amplas, de dois golos, contra o FC Vizela e o Farense (neste caso até em superioridade numérica), da mesma forma que se deixou entorpecer por um 0-0 na Áustria, convicto da sua superioridade técnica e tática sobre uma equipa realmente inferior, como era o Sturm, a quem permitiu que se adiantasse no marcador e fizesse um golo-despertador. Se o que se lhe pede é que cerre fileiras, que vire um jogo num quarto-de-hora, como fez em Graz, que inverta os dados de uma partida em que estava a ser arrasado, como na receção à Atalanta, que se imponha no fim dos descontos, como contra o FC Vizela, ou com um a menos, como ontem, contra o FC Arouca, este Sporting de 2022/23 responde presente. Chegará para os objetivos? É difícil antevê-lo. Esta equipa tem incomensuravelmente mais meios do que a que ganhou a Liga de 2021, é mais diversificada na frente, mas para já falta-lhe uma coisa que tinha nessa altura, que era a tranquilidade, a segurança na adversidade – os atributos que na segunda metade dessa época lhe permitiram o 0-0 no Dragão e o 1-0 em Braga, com um a menos durante 70 minutos, e que no limite lhe garantiram o campeonato. Ontem, ganhando ao FC Arouca, o Sporting garantiu mais três semanas de liderança isolada e isso pode ajudar Amorim a inverter o sentido de fatalidade vigente naquele balneário. Porque é possível ter as duas caras.
Outro tipo de fatalidade. Na sexta-feira, na Live do Futebol de Verdade (que pode ver aqui), enganei-me e levei-vos no meu engano. Disse que os quatro candidatos eram favoritos para os jogos deste fim-de-semana mas que tinha seríssimas dúvidas de que pudesse na segunda-feira falar de quatro vitórias. Afinal, todos ganharam, cumprindo outro tipo de fatalidade, a que nos manda acreditar que os grandes acabam sempre por se impor, com mais ou menos dificuldades. Mas os problemas pelos quais todos passaram deixam-me ao menos o consolo de quase ter tido razão. O Benfica ganhou ao Estoril com um golo aos 90+3’, o SC Braga impôs-se ao Rio Ave com dois golos e uma virada aos 90+1’ e aos 90+6’, o FC Porto e o Sporting venceram o Portimonense e o FC Arouca pela margem mínima e com um jogador a menos. Já estão os quatro nas primeiras quatro posições da Liga, quando estamos a chegar a um quarto da competição, mas 17 das 25 vitórias que obtiveram foram por um golo de diferença apenas. Além disso, sete foram conseguidas a partir do minuto 90. Podemos olhar para isto e ver o que quisermos. Que as diferenças estão a diminuir, mas também que no fim os poderosos ganham sempre na mesma. É outro tipo de fatalidade.
O momento de Schmidt. Não vi maldade na resposta torta de Roger Schmidt ao jornalista que o questionou acerca das opções que tomou, nomeadamente na demora nas substituições, no jogo que o Benfica sofreu para ganhar ao Estoril. Mas vi um pouco de soberba, sim, como se o alemão se sentisse no topo da pirâmide alimentar dos que andam no futebol e houvesse uma via ascensional de jornalista para treinador. Estou cansado de ler comentários ridículos nas redes sociais, de gente a dizer que analisar depois dos jogos é fácil – como se fosse possível analisar antes... – ou a perguntar porque é que não fomos para treinadores, se achamos que sabemos assim tanto de futebol. Nem vale a pena explicar-lhes que não há via ascensional de uma carreira para a outra, que não se passa de jornalista a treinador – ou de espectador ou leitor a jornalista, já agora – como se vai de sargento a tenente. Há tanta legitimidade do treinador do Benfica para mandar à cara do repórter o sobranceiro “se um dia chegares a treinador podes fazer como achas melhor” como haveria de qualquer um de nós, que estamos deste lado, para dizer a quem quer que seja que nos questione uma pergunta algo como “se um dia chegares a jornalista pode ser que te saias melhor”. Há legitimidade, sim, para vocês discordarem da minha análise ou das perguntas que faço, mesmo não sendo comentadores ou jornalistas, como há da minha parte em discordar das opções de Schmidt. E o momento de Schmidt não é bom. Assistiu passivamente durante 25 minutos ao desabar da equipa em Milão até lhe introduzir as primeiras mudanças, rodou para além do razoável no Estoril, onde correu sérios riscos de deixar pontos. Não há uma maneira certa e uma maneira errada de se fazer uma equipa ou de a rodar – e se há um ano se apontava a Schmidt a teimosia de não mudar nada, agora aponta-se-lhe um excesso de rotatividade. Mas fica a sensação de que boa parte dos jogadores deste Benfica estariam mais confortáveis com um futebol diferente. E isso pode vir a tornar-se um problema.
Zaragoza, muito prazer. Não foram os dois golos de McTominay a tirar a cabeça de Ten Hag do cepo em que já estava. Não foi o remate de Martinelli contra a face de Aké, a levar a bola para o fundo da baliza do City e a permitir ao Arsenal de Arteta mostrar ao mundo que é possível bater-se com a armada de Guardiola. O momento do fim-de-semana, quem o criou foi Bryan Zaragoza, jovem extremo do Granada CF, autor de um bis contra o FC Barcelona que mesmo assim só valeu um ponto. Recebeu no espaço, meteu a bola entre as pernas de Koundé, levando-a para dentro e para a finalização de pé direito, mas vendo a trajetória bem tapada, entortou outra vez o central adversário com um drible para a posição em que estava inicialmente. Aí, deparando-se com outro problema – pedia-se-lhe que chutasse de canhota – resolveu-o como era suposto, com uma trivela a meter a bola nas redes de Ter Stegen. Este Granada CF está abaixo da linha de água na Liga Espanhola, mas há razões para que o vejamos jogar. E a primeira de todas é Bryan Zaragoza.